Que conselhos a quem quer empreender depois dos 50 anos?

Aos 56 anos de idade, a carreira profissional de João Filipe Torneiro conheceu um momento de viragem, quando o consultor, professor académico e conferencista decidiu tornar-se empreendedor. Criou, então, uma consultoria que apoia empresas na redefinição dos seus modelos de negócio e em estratégias que as ajudem a gerar mais valor. Nesta entrevista, abordamos a…
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Muitas pessoas com carreiras longas hesitam em mudar de rumo. Que conselhos para quem deseja empreender depois dos 50 anos? Este foi o mote para a conversa com João Filipe Torneiro, consultor, professor académico e conferencista, a partir da sua própria experiência de alguém que decidiu fazer uma metamorfose profissional depois dos 50.
Empreendedores Negócios

Aos 56 anos de idade, a carreira profissional de João Filipe Torneiro conheceu um momento de viragem, quando o consultor, professor académico e conferencista decidiu tornar-se empreendedor. Criou, então, uma consultoria que apoia empresas na redefinição dos seus modelos de negócio e em estratégias que as ajudem a gerar mais valor. Nesta entrevista, abordamos a experiência, a visão e os conselhos de João Torneiro, agora com 59 anos, para quem pretende ser empreendedor depois dos 50 anos.

 

 

A sua transição para o empreendedorismo aconteceu depois de uma carreira com diferentes funções em várias empresas. O que o levou a dar esse passo e como foi esse processo de reinvenção?
A minha transição para o empreendedorismo não resultou de um plano deliberado, mas antes de uma oportunidade de reinvenção que abracei com determinação. Depois de uma carreira consolidada em grandes organizações, surgiu um momento que me levou a desenhar uma nova jornada que me permite criar um impacto direto e ajudar diferentes empresas a transformarem-se num mundo cada vez mais orientado para o cliente.

Este processo foi inspirado por dois professores da Kellogg School of Management, onde me certifiquei e tive a oportunidade de estudar ao longo de vários anos. Sem que nada o pudesse antever, essa aprendizagem profunda viria a dar-me o enquadramento estratégico necessário para estruturar este novo ciclo da minha carreira.

Na sua essência, esta minha metamorfose profissional foi alicerçada em três dimensões: uma primeira, que se prendia com o propósito e criação de valor, pois tinha vontade de impactar mais empresas de forma direta, ajudando-as a repensarem os seus modelos de negócio e a transformarem-se na era da centralidade no cliente; a segunda estava relacionada com o desafio e a autonomia. Empreender trouxe-me a liberdade de construir algo próprio, desenhar soluções inovadoras e atuar sem as limitações das grandes estruturas corporativas. É um exercício de responsabilidade total, onde os resultados dependem exclusivamente das decisões e das ações tomadas; e a terceira dimensão estava diretamente ligada com a aprendizagem contínua. Num mundo de mudanças aceleradas, a reinvenção não pode ser um evento único, mas sim um processo contínuo. O empreendedorismo exige estar em modo de aprendizagem permanente, adaptando as metodologias às necessidades reais das empresas e explorando novos caminhos para a inovação.

Esta jornada significou um dos desafios mais transformadores que já enfrentei, exigindo combinar experiência com visão estratégica e paixão pela transformação dos negócios. Hoje, olhando para trás, percebo que este passo, muito mais do que uma mudança de carreira, revelou um novo propósito de vida.

“Esta jornada significou um dos desafios mais transformadores que já enfrentei”

Muitas pessoas com carreiras longas hesitam em mudar de rumo. Que conselhos daria a quem quer empreender depois dos 50 anos?
Nunca é tarde para começar algo novo e a questão da idade não deve ser motivo para desanimar. A experiência é um trunfo: quem tem um percurso sólido traz conhecimento, credibilidade e uma rede de contactos valiosa, que são aspetos fundamentais para empreender com sucesso.

Para começar a empreender, diria que o ponto de partida deve ser refletir sobre onde podemos acrescentar mais valor e de que maneira a experiência acumulada pode ser transformada num modelo de negócio sustentável. E, naturalmente, ter um propósito claro faz toda a diferença. Empreender não deve ser apenas um ato de independência, mas sim criar algo que gere impacto e valor. No meu caso, comecei com uma folha em branco e estruturei a minha proposta de valor em três pilares: consultoria, aconselhamento à gestão e formação de executivos.

“A questão da idade não deve ser motivo para desanimar. A experiência é um trunfo”

O mundo muda rapidamente e o empreendedorismo exige uma mentalidade ágil e uma forte capacidade de adaptação. Aprender continuamente é, também, essencial. E a humildade para ouvir, testar e ajustar deve ser uma constante, independentemente da experiência acumulada.

Por fim, ninguém constrói nada sozinho. Ter uma rede de apoio forte, procurar mentores e estabelecer parcerias estratégicas são fatores decisivos para acelerar o crescimento e garantir um posicionamento sustentado no mercado.

“Empreender não deve ser apenas um ato de independência, mas sim criar algo que gere impacto e valor”

Tendo passado por cargos de liderança em grandes organizações, que diferenças encontrou na gestão de uma empresa própria? O que mais o surpreendeu nesta mudança?
A maior diferença, logo de início, foi a multiplicidade de papéis. Como empreendedor, é preciso gerir tudo, desde a angariação de clientes até à faturação. Não há equipas especializadas para cada função, o que exige uma visão global do negócio e uma capacidade constante de adaptação.

A agilidade na tomada de decisão também é marcante. Sem burocracias ou hierarquias complexas, as soluções podem ser testadas rapidamente, ajustadas e implementadas com eficiência. Mas, ao mesmo tempo, essa autonomia vem acompanhada de total responsabilidade: cada decisão tem um impacto direto e imediato, sem margem para transferir responsabilidades.

Outra grande mudança foi a liberdade estratégica. Poder inovar sem restrições corporativas permite desenhar soluções verdadeiramente orientadas para o cliente, adaptadas à realidade do mercado e à necessidade de cada empresa.

Mas nesta mudança, o que mais me surpreendeu foi a importância da rede de contactos. Em Portugal, os “rótulos corporativos” ainda têm peso, o que por vezes reflete algum preconceito na forma como se valoriza a credibilidade dos profissionais. Mas isso também representa uma oportunidade: quando se constrói reputação pelo mérito e pelo impacto efetivo, o reconhecimento é mais autêntico e duradouro.

“Nesta mudança, o que mais me surpreendeu foi a importância da rede de contactos. Em Portugal, os ‘rótulos corporativos’ ainda têm peso, o que por vezes reflete algum preconceito na forma como se valoriza a credibilidade dos profissionais”

Criou a Filipe Torneiro Consulting para ajudar empresas a redefinir os seus modelos de negócio. Que histórias interessantes tem para partilhar desta sua nova etapa?
Desde a criação da Filipe Torneiro Consulting, tenho tido a oportunidade de trabalhar com empresas que procuram redesenhar os seus modelos de negócio com base na centralidade no cliente. Esta proximidade com diversas realidades empresariais tem-me permitido acompanhar histórias muito interessantes, como é o caso da descoberta pelo verdadeiro valor dos clientes. Com a aplicação do nosso referencial estratégico CC Loop, muitas empresas perceberam que o cliente é um ativo estratégico e que repensar a sua experiência e fidelização pode ser um motor de crescimento sustentado.

Por outro lado, num mundo em constante mudança e cada vez mais exigente, a transformação digital é a chave da competitividade das empresas e um acelerador de mudança. Neste campo, tenho tido a oportunidade de desenvolver projetos onde a digitalização e a experiência do cliente (CX – Customer Experience) foram essenciais para que esta transformação nas empresas pudesse ocorrer, o que envolveu a calibração de processos e a procura de novas formas de relacionamento com os clientes para gerar valor.

Durante o desenvolvimento destes projetos, pude constatar que o maior desafio nem sempre é a tecnologia, mas sim a cultura organizacional. Em vários casos, apercebi-me que o maior obstáculo à inovação não era a tecnologia disponível, mas sim a resistência interna à mudança e a necessidade de transformar mentalidades e processos enraizados. Isto significa que esta transformação deve partir de uma mudança estrutural ao nível da cultura organizacional, que privilegie o digital e promova a integração das novas tecnologias na empresa.

De uma maneira geral, há muitas aprendizagens a retirar neste “trabalho de terreno”. Trabalhar diretamente com empresas de diferentes setores permitiu-me acompanhar desafios estratégicos e operacionais complexos e perceber como uma cultura de centralidade no cliente pode ser o fator decisivo para resultados mais sustentados.

Além dos projetos que desenvolvo para empresas, também as palestras e as conferências que realizo tanto em Portugal como no estrangeiro me oferece a possibilidade de conhecer realidades empresariais muito distintas, não só em termos de indústrias como de mercados, enriquecendo ainda mais a abordagem aplicada na consultoria.

Como corolário desta jornada, ainda no primeiro semestre, irei lançar um livro onde partilho metodologias, insights e casos de sucesso que mostram como a centralidade no cliente pode verdadeiramente alicerçar a transformação das organizações para maior geração de valor.

João Filipe Torneiro, 59 anos de idade


Quais são os desafios mais comuns que as organizações enfrentam hoje e como podem superá-los?

As organizações enfrentam hoje desafios estruturais e estratégicos, que exigem novas abordagens para garantir um crescimento sustentável e diferenciação no mercado. Um dos desafios mais relevantes da atualidade prende-se, sem dúvida, com a questão da transformação digital e a integração dos dados. Muitas empresas, especialmente as PME’s, ainda não incorporaram dados e tecnologia na tomada de decisão. A digitalização não pode ser apenas uma questão de ferramentas e exige uma mudança cultural que valorize a informação como um ativo estratégico.

Outro dos grandes desafios que as organizações enfrentam tem a ver com a centralidade no cliente e a personalização da experiência. O cliente atual espera experiências coerentes, fluídas e personalizadas em todos os canais. Para responder a esta exigência, as empresas precisam de adotar segmentação inteligente, marketing baseado em dados e estratégias de fidelização.

Por outro lado, tenho observado que as empresas que não cuidam dos seus profissionais têm dificuldades em criar experiências diferenciadoras para os clientes. A retenção de talento e o investimento na cultura organizacional são determinantes para a entrega de valor sustentável, ou seja, tem de haver um alinhamento entre a experiência do cliente (CX) e a experiência do colaborador (EX).

A necessidade de crescimento sustentável e internacionalização é, também, outro dos grandes desafios. O tecido empresarial português é composto essencialmente por PME’s, muitas das quais enfrentam desafios na expansão internacional e na rentabilidade. O crescimento exige pensamento estratégico, capacidade de adaptação e foco na diferenciação.

A todos estes desafios acresce um outro, não menos relevante, que está relacionado com o papel da Inteligência Artificial (IA) na transformação das empresas. A adoção de IA e outras tecnologias emergentes pode ser um acelerador de inovação, mas o verdadeiro desafio é garantir que a tecnologia amplifica o valor humano e não o substitui. A aplicação daquilo que designo por inteligência autêntica – ou seja, tecnologia ao serviço da experiência humanizada – será o fator diferenciador para as empresas que querem prosperar nesta nova era.

“As empresas que não cuidam dos seus profissionais têm dificuldades em criar experiências diferenciadoras para os clientes”

Como aconselha as empresas a manterem-se inovadoras sem perderem de vista a sustentabilidade do negócio?
O equilíbrio entre inovação e rentabilidade continua a ser um desafio crítico. Para que a inovação seja sustentável e traga valor real ao negócio, destaco quatro princípios orientadores: o primeiro, é que a inovação deve ser encarada como um meio e não como um fim. A inovação não deve ser um exercício isolado ou uma mera resposta a tendências do mercado. Deve criar valor tangível, seja pela diferenciação, através da eficiência ou pela experiência do cliente.

O segundo é o que introduz o conceito de foco no cliente que, em termos simples, afirma que as melhores inovações surgem quando resolvem problemas reais dos clientes e, nesse sentido, o cliente deve ser visto como o motor da inovação. Em vez de um modelo tradicional de inovação “da fábrica para fora”, as empresas devem apostar numa abordagem do mercado para dentro, ouvindo clientes e antecipando as suas necessidades.

O terceiro princípio aponta para a importância da experimentação e da complementaridade. Inovar exige arriscar e testar, sem comprometer a sustentabilidade do negócio. As empresas que adotam um mindset de experimentação – testando em pequena escala antes de grandes investimentos – conseguem replicar e aprender mais rápido. Neste caminho, as parcerias estratégicas também são chave para acelerar processos e complementar competências.

Por último, é fundamental saber balancear a curto e longo prazo. Os processos de inovação ganham quando estão alinhados com métricas claras de sucesso que garantam viabilidade financeira. O desafio está em conjugar ganhos rápidos com uma visão estratégica de longo prazo, assegurando que o crescimento sustentável acompanha a inovação.

As empresas que vêm adotando estas práticas conseguem manter-se competitivas, inovadoras e relevantes, sem comprometerem a solidez dos seus negócios.

“As melhores inovações surgem quando resolvem problemas reais dos clientes e, nesse sentido, o cliente deve ser visto como o motor da inovação”

Portugal tem um ecossistema de empreendedorismo em crescimento. Como vê o ambiente para novos negócios no país e que mudanças gostaria de ver para que esses negócios prosperassem?
Portugal tem feito progressos significativos no desenvolvimento do seu ecossistema de empreendedorismo e inovação. No entanto, há ainda barreiras estruturais que impedem muitos negócios de escalar e prosperar globalmente. Para que o país se afirme como um verdadeiro hub de inovação e crescimento sustentável, considero fundamentais quatro eixos de transformação: em primeiro lugar, é imprescindível acelerar reformas estruturais. Apesar dos avanços que tivemos nos últimos anos, persistem desafios no sistema judicial, na eliminação da burocracia e na promoção de lideranças meritocráticas. Um ambiente mais ágil e previsível incentivaria o investimento e a criação de novas empresas.

Em segundo lugar, é necessário reforçar o apoio à internacionalização. Portugal tem talento e capacidade de inovação, mas muitas empresas enfrentam dificuldades em escalar para mercados globais. Precisamos de um maior foco em programas que facilitem a entrada em mercados estratégicos, com acesso a redes internacionais e suporte à exportação.

“Um ambiente mais ágil e previsível incentivaria o investimento e a criação de novas empresas”

Depois, é fundamental desenvolver mentalidades mais orientadas para o risco. O empreendedorismo implica experimentação e erro, mas a nossa cultura ainda penaliza demasiado o fracasso. Deve ser fomentada uma cultura de inovação em que o erro seja encarado como parte do processo de aprendizagem e crescimento.

Por último, é essencial aproximar empresas e universidades para promover uma inovação aplicada. A ligação entre o conhecimento académico e a indústria pode acelerar a inovação e o desenvolvimento económico. Neste contexto, destaco o programa VOICE, onde coordeno a área de gestão de clientes e onde encontramos exemplos concretos de PME’s que estão a definir novas rotas de valor nos mercados globalizados. Iniciativas como esta demonstram que a colaboração e o conhecimento estruturado são fundamentais para impulsionar o crescimento das empresas.

Se Portugal conseguir avançar nestas dimensões, poderá consolidar-se como um verdadeiro polo de inovação e empreendedorismo, permitindo que as empresas se tornem mais competitivas e que definam rotas de valor sustentável no mercado global.

“O empreendedorismo implica experimentação e erro, mas a nossa cultura ainda penaliza demasiado o fracasso”

 

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