Há uma certa contradição na Nazaré em dia de campeonato de ondas grandes. Num momento o dia está a nascer, uma mãe leva o filho à escola, o mar parece calmo e nas ruas a vida acontece como em qualquer outra terça-feira. No lounge da TUDOR, Clement Roseyro – que acabava de ser anunciado como o novo embaixador da marca – aparenta total descontração e a quantidade de pessoas que desce para o Forte de São Miguel Arcanjo não rivaliza com o número de visitantes que todos os dias passa pelo local.
Mas depois a Nazaré mostra-nos a sua segunda cara. E lembra-nos que mesmo ali ao lado está o canhão que entrega a Portugal as maiores ondas do mundo.
Com nove equipas em prova, a World Surf League (WSL) deu luz verde para o início do TUDOR Nazaré Big Wave Challenge às 11h, com o primeiro heat a ditar logo o ritmo da competição. A dupla luso-francesa somou 37,50 pontos na primeira ronda, com Roseyro na liderança individual, a contribuir com 21,83 pontos, e Nic von Rupp com 15,67 pontos.
O domínio francês continuou com Justine Dupont a liderar entre as três mulheres em prova, com 19,06 pontos, e em segundo lugar na tabela de equipas, ao lado do também francês Éric Rebière (30,17 pontos). A fechar o pódio, a meio da competição, estava a dupla brasileira de Lucas Chumbo e Pedro Scooby, com 29,88 pontos.
Espetáculo imperdível
Por esta altura já o número de adeptos deixava claro que algo de muito especial estava a acontecer na Praia do Norte. Segundo a organização, passaram pelo local cerca de 50 mil pessoas.
O que pouco se conta sobre este campeonato é que a energia que se sente do lado de fora é mais do que suficiente para rivalizar com a energia das ondas mais poderosas do mundo. O público chega ao longo de todo o dia, nem que seja por cinco minutos de competição. E chegam prontos: trazem cadeiras, mesas, comida, bebida e o equipamento necessário para enfrentar qualquer que seja a surpresa meteorológica que a Nazaré tenha reservada. Como a chuva, que este ano também quis marcar presença.
E por mais que em determinados momentos, enquanto se passa entre os adeptos, seja possível ouvir uma ou outra preferência por um determinado atleta ou nacionalidade, no momento em que um surfista desce a onda ninguém fica indiferente no cliff, que irrompe em aplausos. Seja quem for o atleta. Um fenómeno pouco comum no mundo do desporto.
“Se eles me quiserem aceitar, eu vou”
O surf de ondas grandes é um desporto de equipa. Equipa essa que vai além dos dois surfistas que dão a cara pelas duplas. Há o responsável pelo primeiro resgate, que está na água ao lado dos dois atletas, e o spotter, que fica no cliff em contacto com a restante equipa através do rádio. Lucas Fink, tetracampeão mundial de skimboard e Under 30 da Forbes Portugal, costuma ficar responsável pelo resgate na equipa de Chumbo e Scooby, mas este ano uma lesão fez com que o encontrássemos junto ao farol, no papel de spotter.
“É muito bom, num dia como hoje, que é um dos dias mais importantes da temporada para eles, eu poder participar da equipa. Obviamente, gostaria de estar dentro de água, a ajudá-los no resgate, que é a minha especialidade, mas não pude por conta da lesão, então ajudei aqui no rádio. Só de participar na operação e poder contribuir de alguma forma é uma honra enorme para mim”, diz Lucas Fink à Forbes.
Lucas Chumbo é um dos nomes grandes do surf de ondas grandes. Até aqui, o brasileiro somava vitória atrás de vitória – três no ‘tow in’ e uma na remada. Só que uma lesão acabou por complicar um pouco a temporada 2024/25. Algo que não o impediu de se apresentar na Nazaré pronto para competir.

“O Chumbo, do jeito que ele é, desde que se magoou o foco era sempre recuperar o mais rápido possível. Ele teve uma lesão muito grave, uma fratura, também com lesões nos ligamentos. Passou por cirurgia, acho que há um mês e uma semana. Realmente é uma recuperação foguete. Ele dedicou-se muito, sessões de fisioterapia três vezes por dia. Só de estar a competir no dia de hoje é uma vitória. Para quem conhece e assistiu, sabe que ele estava longe dos seus 100%, mas acho que isso mostra a paixão e o compromisso dele. Poderia muito bem abrir mão, dar-se por vencido e nem querer arriscar, mas ele dedicou 200% para estar minimamente apto. E mesmo estando minimamente apto, foi lá e deu o seu melhor”, continua.
Despois da responsabilidade pelo resgate e o auxílio em terra, Lucas Fink espera agora conseguir uma oportunidade de se juntar à sua equipa com um papel um pouco diferente. E ele é diferente de qualquer outro surfista na Nazaré. Fiel ao desporto que o levou ao título mundial por quatro vezes, o brasileiro desce as ondas da Praia do Norte com uma prancha de skimboard, e não uma prancha de tow in. E se até agora isso não o impediu de arriscar, porque é que não estaria apto para competir no Nazaré Big Wave Challenge?
“Eu vejo-me a competir no Nazaré Tow Challenge. Surf, para mim, é qualquer pessoa que esteja a apanhar uma onda com qualquer equipamento que seja. Então, surf por surf, aproveitamos estas ondas tão bem quanto a maioria dos surfistas aqui. Melhor do que vários. Mesmo com equipamento limitado, digamos assim, sem quilhas, sem alças. Seria um sonho participar. E acho que muito interessante para o público. Torço para que a WSL me permita um dia participar. Muitas pessoas dizem que eu deveria treinar com a prancha de tow in, mas eu prefiro ser um diferente do que ser mais um no meio do mar da Nazaré. Se eles me quiserem aceitar para competir de skimboard, eu vou. E tenho a certeza de que vou dar show“, diz.

Segunda parte
Antes dos quarto, quinto e sexto heats, a equipa da Forbes mudou de ponto de vista. Na água, a acompanhar a competição a partir do barco e a sentir o movimento das ondas, esta modalidade torna-se ainda mais impactante. Principalmente quanto temos em conta que as ondas do dia da competição ficaram longe daquilo que a Nazaré é capaz: chegaram no máximo aos 12 metros.
No final do dia, Clement Roseyro levou o prémio de melhor performance masculina, Justine Dupont, que ficou no segundo lugar entre todos os surfistas da competição, venceu a melhor performance feminina e a nível de equipas o troféu foi entregue a Clement e Nic von Rupp.

A dupla luso-francesa terminou o campeonato com 37,87 pontos, sendo que Clement contribuiu com 21,83 pontos e Nic com 16,04 pontos, dando ao português o quinto lugar no quadro geral. Esta foi a segunda vez que Nic subiu ao primeiro lugar do pódio, depois de em 2022 festejar o mesmo título ao lado do brasileiro Lucas Chumbo.
Desta vez, Chumbo e Scooby terminaram o campeonato em segundo lugar, com 35,20 pontos. O brasileiro ficou também em segundo lugar no quadro individual. A fechar o pódio ficou a dupla britânica formada por Andrew Cotton e Ben Larg – 31,72 pontos – com o último a fechar o pódio a nível individual.
Do lado feminino, fecharam o pódio a brasileira Michelle des Bouillons (13,03 pontos), parceira do também brasileiro Ian Cosenza, e a britânica Laura Crane (4,71 pontos), que estava acompanhada pelo português António Laureano. Apenas três mulheres competiram entre o grupo de 18 surfistas.

A história repete-se
Enquanto um português festejava no pódio, outro falava com a Forbes sobre mais um ano em que a Nazaré não lhe deu o momento pela qual tem vindo a trabalhar época atrás de época. É para isto que os surfistas se preparam o inverno inteiro: para mostrarem o seu surf no Nazaré Big Wave Challenge. Pela terceira vez consecutiva, António Laureano não o conseguiu fazer.
“São três anos seguidos e é chato”, afirma. “Este ano eu estava confiante com o meu surf, com a minha estratégia, estava a surfar bem e a conduzir bem. A minha equipa, o meu treinador, o meu spotter, a Laura, o meu pai, há uma grande equipa por trás e todos nós pensámos que este ano iria ser o ano que eu ia conseguir mostrar o meu surf, mas infelizmente não deu”.
Há dois anos foi a lesão de Justine que o afastou da prova, no ano passado foi a sua própria lesão que o obrigou a fazer grande parte da competição apenas no jet ski – sendo que conseguiu ajudar Maya Gabeira a chegar ao primeiro lugar – e este ano foi a lesão de Laura Crane que se meteu no caminho.

“No primeiro heat eu comecei a conduzir para a Laura. Ainda tentámos encontrar umas ondas, mas estava um bocado difícil. Houve uma direita em que eu a meti, ela conseguiu fazer uma boa linha, mas depois na segunda manobra acabou por cair, porque a onda estava muito aos saltos. Quando caiu acabou por se lesionar. Ainda tentou conduzir para mim duas, três ondas, mas estava com muitas dores, até que chegou uma altura em que ela já não aguentava mais e tivemos de ir para o para o porto de abrigo. Do porto de abrigo a Laura foi numa ambulância e foi até ao hospital. E acabámos por ficar fora do campeonato”, conta.
Tony, como é conhecido, e Laura são a dupla mais recente do Nazaré Big Wave Challenge. Depois de Maya anunciar a sua retirada da modalidade, a WSL acabou por fazer o convite à surfista britânica. “Supostamente era para fazer o campeonato com a Maya, só que a Maya decidiu reformar-se. Ela já tem uma carreira incrível, já fez tudo, toda a gente sabe quem é a Maya Gabeira. Quando a WSL soube disso ligou-me a perguntar com quem eu iria fazer a parceria e disseram que tinham a Laura Crane em cima da mesa, porque como saiu uma mulher teria de entrar outra mulher, e foi aí que surgiu a parceria”, diz o surfista.

As ondas
Como não poderia deixar de ser, as ondas foram o principal tema do dia. Mas nem sempre pelos melhores motivos. Várias foram as vozes que se levantaram a defender que aquele não foi o melhor dia para fazer o campeonato, uma vez que as condições do mar não eram as melhores.
“Ondulação de oeste com vento sul. Este vento deixa as condições parecerem bonitas para quem vê de fora, mas deixa a onda com inúmeros mini saltos e extremamente difícil de ser surfada”, diz Michelle des Bouillons à Forbes. “Seria melhor se os eventos acontecessem mais para meio da temporada e não no final, porque do início até meio da temporada as ondas estão mais perfeitas e os atletas com 100% ou até mais da sua performance. No final da temporada já todos estão cansados, alguns até lesionados e as ondas tendem a estar mais irregulares. Não acho que o problema deste ano tenha sido o tamanho, mas sim um vento e uma direção não muito favorável. Também havia muita corrente a “sujar” a pista de performance. Isso tudo só causa mais dificuldade para surfar as ondas, mas é aí que o atleta tem de mostrar a sua superação”.
Exatamente o que Michelle mostrou ao lado de Ian Cosenza. No final, a surfista tira uma nota positiva daquilo que foi um dia bastante difícil para os atletas: “Gostei muito da minha performance, fui bem sólida no meu surf e o Ian encontrou as melhores ondas do evento para mim. Apanhei as maiores ondas do evento e surfei no crítico delas do início ao fim”.

Tony mencionou também a dificuldade que sentiu durante o seu heat: “Estava bastante difícil. Foi uma altura do mar bastante complicada, com uma corrente muito forte. Mas a verdade é que de qualquer das maneiras vimos ondas muito boas durante o dia. Infelizmente não aconteceram no meu heat, mas isso é algo que não conseguimos controlar. Faz parte da natureza”.
Lucas realçou ainda que parece ser este tipo de mar a preferência da própria organização do evento. Ou seja, não tão grande, uma vez que sabemos que as ondas da Nazaré podem chegar aos 30 metros, mas com um tamanho onde é possível para os surfistas mostrarem mais do que apenas descer a onda. “Se olharem para o histórico dos dias de competição e as notas que foram mais valorizadas, a tendência é esse caminho. Estimular, obviamente, um surf extremo nas maiores ondas possíveis, mas onde os surfistas consigam realmente dar um espetáculo para o público. Não só estar a descer uma onda gigante, a sobreviver, mas mandar curvas, ficar em locais extremos da onda, aéreos, tubos. As opções são infinitas”, afirma.
A Forbes contactou a WSL para perceber o que os levou a considerar aquele dia o melhor para o campeonato e Rob Gunning, Europe tour manager da liga, explicou: “A WSL, a Surfline e os meteorologistas locais têm estado a monitorizar as ondulações durante a época, mas a maioria era demasiado oeste para ser ideal para a Nazaré. A única outra ondulação que tinha potencial foi em meados de janeiro, mas os gráficos diziam que o vento ia ser demasiado forte e na direção errada, o que acabou por acontecer. Assim, esta ondulação, tendo em conta o final da época (a janela fecha no final de março), tinha a melhor direção e as melhores condições de vento de toda a época para a realização do evento, com um mínimo de 25 pés [cerca de 7 metros e meio]”.