Guia prático para compreender a atual crise política. E perceber o que vai acontecer

A situação política atual, com a rejeição de uma Moção de Confiança, vai levar o nosso país para as terceiras eleições legislativas (antecipadas) no espaço de apenas 3 (anos), quando o normal seria que os portugueses fossem às urnas para eleger os seus representantes na Assembleia da República de 4 em 4 anos (n.º 1…
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Em face da queda do Governo, construímos um guia prático para compreensão da atualidade política, a partir de uma análise jurídico-constitucional do que podemos esperar dos próximos tempos.
Economia

A situação política atual, com a rejeição de uma Moção de Confiança, vai levar o nosso país para as terceiras eleições legislativas (antecipadas) no espaço de apenas 3 (anos), quando o normal seria que os portugueses fossem às urnas para eleger os seus representantes na Assembleia da República de 4 em 4 anos (n.º 1 do artigo 171.º da Constituição).

Sendo a problemática delicada e complexa, entendemos ser útil deixar um guia prático de compreensão da realidade política, sob a forma de Perguntas & Respostas. Para esta análise jurídico-constitucional contámos com o apoio de Ana Filipa Urbano e Ricardo Barbosa Moreira, da Dower Law Firm.

A crise política e o que daí se seguirá, num guia com sete tópicos:

 

  1. O que espoletou a situação política atual?

R.: Reconhecendo-se o assunto como tendo natureza política, o mesmo não deixa, porém, de ter evidentemente uma componente jurídica.

É obrigação do Primeiro-Ministro exercer as funções em regime de exclusividade, o que significa que aquele não pode beneficiar de rendimentos para além do salário que aufere pelo cargo político que ocupa, o de Primeiro-Ministro (alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º e n.º 1 do artigo 6.º, ambos da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho).

 

  1. Qual a incompatibilidade em causa?

R: Existindo uma empresa – da qual o Primeiro-Ministro deixou de ser sócio em 2022, mas sendo a sua esposa, com quem é casado em regime de comunhão de bens, sócia durante o período do seu mandato – que recebe uma avença da empresa Solverde e tendo esta última como cliente o Estado português, poder-se-ia colocar em causa a transparência.

A incompatibilidade que os partidos da oposição invocam consiste, pois, no facto de o Primeiro-Ministro poder, em última instância, ter beneficiado de uma avença de uma empresa que tem relações contratuais com o Estado português, com risco de a mesma ser por este beneficiada, pela ligação, ainda que indireta, ao Primeiro-Ministro.

Não consubstanciando os factos relatados uma violação direta da lei, ainda assim parece ser de concluir que deveria o Primeiro-Ministro, na declaração entregue à Entidade da Transparência, fazer referência a estes factos como suscetíveis de gerarem incompatibilidades e impedimentos, o que não terá feito (artigo 2.º da Lei Orgânica n.º 4/2019, de 13 de setembro).

 

  1. O que implica a demissão do Primeiro-Ministro?

R.: A demissão do Primeiro-Ministro tem como consequência a demissão do Governo (alínea b) do n.º 1 do artigo 195.º da Constituição).

Com a demissão do Governo, tem o Presidente da República duas opções:

  • nomear um novo Governo; ou
  • dissolver a Assembleia da República e convocar eleições legislativas antecipadas (alíneas f) e h) do artigo 133.º da Constituição).

 

Nota: o Presidente da República não pode dissolver a Assembleia no último semestre do seu mandato, o qual se inicia no mês de junho de 2025, considerando que as próximas eleições presidenciais ocorrerão em janeiro de 2026 (n.º 1 do artigo 172.º da Constituição).

 

  1. O que distingue uma moção de censura de uma moção de confiança?

R.: A moção de censura é uma iniciativa de votação que pode partir de um quarto dos deputados à Assembleia da República ou de qualquer grupo parlamentar, com o objetivo de censurar a atuação do Governo (artigo 194.º da Constituição).

A moção de confiança é uma iniciativa do Governo que ocorre quanto aquele solicita à Assembleia da República a votação de um voto de confiança sobre a sua atuação (artigo 193.º da Constituição).

A consequência da aprovação com maioria absoluta dos deputados de uma moção de censura ou a rejeição de uma moção de confiança é a demissão do Governo (alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 195.º da Constituição).

Com a demissão do Governo, tem o Presidente da República duas opções:

  • nomear um novo Governo; ou
  • dissolver a Assembleia da República e convocar eleições legislativas antecipadas (alíneas f) e h) do artigo 133.º da Constituição).

 

Nota: o Presidente da República não pode dissolver a Assembleia no último semestre do seu mandato, o qual se inicia no mês de junho de 2025, considerando que as próximas eleições presidenciais ocorrerão em janeiro de 2026 (n.º 1 do artigo 172.º da Constituição).

 

  1. Que outra forma de intervenção dos deputados existe?

R.: Mantendo-se o Governo em efetividade de funções, e considerando os deputados que o Primeiro-Ministro não prestou os esclarecimentos necessários, constitui um poder dos mesmos a constituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), com poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (alínea f) do artigo 156.º, n.º 5 do artigo 178.º e alínea f) do artigo 180.º, todos ambos da Constituição).

A votação do relatório final da CPI não determina a demissão do Governo. Não obstante, os factos que sejam suscetíveis de gerar responsabilidade penal ou contraordenacional, deverão ser enviados para as entidades competentes para efeitos de investimento. Mais pode acontecer que, em função dos mesmos, e existindo votação de uma nova moção de censura ou moção de confiança, haja uma votação distinta da anterior, pela mudança de posição de algum partido relativamente ao tema e quanto ao Governo.

 

  1. Independentemente da ação do Primeiro-Ministro e da Assembleia da República, que poderes tem o Presidente da República à sua disposição?

R.: O Presidente da República tem o poder de demitir o Governo quando considere que tal se afigura como necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas (alínea g) do artigo 133.º e n.º 2 do artigo 195.º, todos da Constituição).

Optando por demitir o Governo, tem o Presidente da República duas opções:

  • nomear um novo Governo; ou
  • dissolver a Assembleia da República e convocar eleições legislativas antecipadas (alíneas e), f) e h) do artigo 133.º da Constituição).

 

Nota: o Presidente da República não pode dissolver a Assembleia no último semestre do seu mandato, o qual se inicia no mês de junho de 2025, considerando que as próximas eleições presidenciais ocorrerão em janeiro de 2026 (n.º 1 do artigo 172.º da Constituição).

 

  1. O sistema judicial pode conduzir alguma investigação contra o Primeiro-Ministro?

R.: Sim, nos termos do Direito Penal e Processual Penal português, com natural vigência do princípio da presunção de inocência (n.º 2 do artigo 32.º da Constituição).

Os membros do Governo, como o Primeiro-Ministro, não gozam, ao contrário dos deputados à Assembleia da República, de imunidade (artigo 157.º da Constituição).

A investigação dos Tribunais apenas pode, porém, dirigir-se aos factos que sejam suscetíveis de enquadramento em crimes definidos pela lei, não podendo o processo penal imiscuir-se em matérias de natureza política, sob pena de violação do princípio da separação de poderes existentes entre o poder executivo (Governo) e o poder judicial (Tribunais) – artigo 2.º e n.º 1 do artigo 111.º, ambos da Constituição.

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