Síndrome da Impostora: “Vejo todos os dias profissionais muito competentes paralisados pela crença de que não são suficientemente bons”

Filipa Jardim da Silva, psicóloga, desde criança que tem uma curiosidade inata sobre as emoções humanas e o comportamento das pessoas. Aos 11 anos escrevia poemas sobre temas existencialistas, e na adolescência devorava os livros do professor Daniel Sampaio, o Diário de Anne Frank e o Principezinho. Foi aos 16 anos, quando uma grande amiga…
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Estudos apontam que 75% das mulheres executivas já experimentaram a síndrome do impostor nas suas carreiras. A psicóloga Filipa Jardim da Silva escreveu sobre o tema, alertando para os riscos, sobretudo nas mulheres, que podem conduzir a um burnout. Como foi o seu caso.
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Filipa Jardim da Silva, psicóloga, desde criança que tem uma curiosidade inata sobre as emoções humanas e o comportamento das pessoas. Aos 11 anos escrevia poemas sobre temas existencialistas, e na adolescência devorava os livros do professor Daniel Sampaio, o Diário de Anne Frank e o Principezinho. Foi aos 16 anos, quando uma grande amiga desenvolveu uma perturbação de comportamento alimentar – anorexia –, que a sua vontade de compreender melhor o cérebro e o comportamento humano se acentuou, confessa em entrevista à Forbes Portugal.

Porém, quando se é bom aluno, o caminho mais óbvio parece ser o da Medicina. Foi então necessária uma boa dose de coragem, confessa a psicóloga, para nomear aquilo que realmente queria estudar: Psicologia. Quando chegou a Lisboa, de armas e bagagens, ou antes, com uma mala cheia de sonhos e uma mochila repleta de medos, como recorda, tinha já a certeza de que queria “dedicar a sua vida ao caminho de transformar vidas. Mais do que um sonho de infância, foi uma missão que se foi clarificando com o tempo”, explica.

Fundou então a clínica Transformar e é autora de dois livros. O último, “Síndrome da Impostora” foi o mote principal para a nossa conversa. Conheça a seguir o motivo que a levou a alertar para o tema.

 

Quando veio estudar para Lisboa, já tinha objetivo de criar um projeto pessoal, criar uma marca nesta área, ou a ideia surgiu depois?

Quando cheguei a Lisboa para o meu primeiro objetivo foi adaptar-me a Lisboa e a uma realidade completamente diferente, partilhando casa com uma amiga. Sendo natural da Madeira, muitas vezes pensei na ideia de ilha como metáfora perfeita para descrever como me sentia nessa altura. No fundo, eu era uma pequena ilha insegura, que se havia soltado e perdido do grande continente confiante. Foi assim que olhei, em várias ocasiões, para as minhas colegas de faculdade, nos primeiros anos: «tantas raparigas seguras de si mesmas, quem me dera sentir-me assim». A comparação com os pontos fortes de cada uma era constante e, por consequência, a vergonha também.

Com a adaptação feita, houve espaço para surgir a avidez em aprender e usufruir de todas as oportunidades de se viver na capital de Portugal. Fiz voluntariados, investigação, inúmeras formações, contactei com muitas pessoas, dois estágios, iniciei a minha psicoterapia pessoal, pelo que o foco foi essencialmente crescer como profissional e como pessoa e criar oportunidades que me permitissem promover saúde mental no maior número possível de contextos, e responder às necessidades que ia observando.

 

Ou seja, a ideia da Transformar nasceu já de alguma experiência profissional…

A ideia de criar uma marca própria surgiu muito mais tarde, apenas no final de 2016, impulsionada pela minha decisão de me despedir da empresa onde estava e de me resgatar a mim própria na sequência de um burnout. Poucos meses depois surgiu o sonho, de criar um projeto que unisse uma abordagem humanizada com uma estrutura profissional robusta, onde a saúde mental fosse tratada de forma integrada, com intervenções orientadas para a eficácia e assentes em evidência. Um projeto onde os profissionais de saúde fossem felizes e tivessem condições de trabalho ótimas que lhes permitisse o melhor desenvolvimento possível da sua missão. Um projeto que contribuísse para maiores níveis de literacia em saúde mental e para a quebra de estigmas, na sociedade em geral, na academia, em empresas e organizações. Por isso a Transformar nasceu de um sonho e é uma realidade em constante atualização hoje em dia.

Todas as pessoas querem mudar algo, em algum momento, nas suas vidas. Contudo, a maior parte, desconhece o processo de mudança, as suas várias etapas.

Como foi fundar a Transformar, e quais as ambições que tem para este projeto?  

Fundei a Transformar com o sonho de criar uma equipa que pudesse dar resposta a diferentes necessidades emocionais, mas também com o compromisso de desafiar o estigma associado à procura de ajuda psicológica. Hoje, a Transformar conta com uma equipa multidisciplinar de cerca de 50 profissionais de saúde (psicólogos clínicos e organizacionais, médicos psiquiatras e de medicina funcional e integrativa, nutricionistas e profissionais de medicina tradicional chinesa. Todos alinhados na mesma missão: promover bem-estar psicológico de forma integrativa, empática e baseada em evidência científica. O futuro passa por continuar a crescer de forma estratégica e sustentável, expandindo o impacto da nossa abordagem integrativa a mais pessoas e empresas, sempre com o foco em transformar vidas. Em 2025 e 2026, pretendemos colaborar mais fortemente com empresas, fortalecer a nossa academia online para difundir ainda mais diversos conteúdos acessíveis em saúde e continuarmos a caminhar para sermos uma das referências em saúde mental em Portugal.

 

Como surgiu o seu primeiro livro, “Dar a Volta”, o que a motivou nesta criação? Qual a principal mensagem e a quem se dirige?

O “Dar a Volta” nasceu da necessidade que senti, ao longo dos anos, de oferecer ferramentas práticas e acessíveis a quem procura sair de momentos de estagnação ou adversidade. Todas as pessoas querem mudar algo, em algum momento, nas suas vidas. Contudo, a maior parte, desconhece o processo de mudança, as suas várias etapas. Então este livro procura ser uma espécie de mapa para aumentar o foco, traçar um plano e agir de forma mais consciente e eficaz desde o ponto de partida até ao desejado ponto de chegada. Sempre assente em ciência e prática clínica, é um guia que mistura evidência, com histórias e reais e estratégias aplicáveis ao dia-a-dia. “Porque um desejo não muda nada, mas uma decisão consciente pode mudar tudo.” Sendo a vida uma sucessão de escolhas, o objetivo foi que o “Dar a Volta” contribuísse para decisões mais alinhadas com o nosso propósito e fortalecesse a nossa resiliência individual: esteja onde estiver, é possível fazer algo para construir uma vida que lhe serve.

 

E no caso desta última obra, “Síndrome da Impostora”, qual foi o mote para o seu lançamento? É um tema que surge muito nas suas consultas?

A Síndrome da Impostora é um tema recorrente não só em consulta, mas também nas formações que facilito em empresas. Vejo, diariamente, profissionais incrivelmente competentes paralisados pela crença de que não são suficientemente bons ou que o sucesso foi um acaso. Já apoiei inúmeras pessoas que tinham alcançado tudo o que supostamente é desejável, mas que se sentiam terrivelmente vazias e tristes. A par de tudo isso, reconheço que eu própria identifiquei esta síndrome em mim pelo que senti a urgência de desconstruir este fenómeno e, mais do que isso, dar ferramentas para que as pessoas possam libertar-se de um ciclo de autossabotagem. O livro é uma extensão desse compromisso.

 

Em que consiste, afinal, esta síndrome, e de que forma prejudica quem dela sofre? É um dos motivos para conduzir ao stress e ao burnout dos profissionais?

A Síndrome da Impostora caracteriza-se por uma crença interna persistente de que a pessoa não é tão capaz quanto os outros percebem — mesmo quando há evidências claras de competência. Essa dissonância cria uma pressão interna brutal: leva a excessos de trabalho para “compensar” a sensação de inadequação, à dificuldade em aceitar elogios e à constante antecipação do momento em que será “desmascarada”. Os estudos mostram que esta síndrome está fortemente correlacionada com ansiedade, depressão e burnout — porque quem vive nessa luta interna raramente sabe parar e cuidar de si.

De acordo com algumas investigações, 70 a 82% da população experimentará este sentimento em algum momento. Segundo uma pesquisa recente da KPMG, 75% das mulheres executivas já experimentaram a síndrome do impostor nas suas carreiras, e de uma forma geral 25 a 30% de pessoas em cargos de liderança tendem a experienciar este fenómeno.

 

Como poderemos prevenir, ou atuar no caso de a detetarmos?

A prevenção passa, em grande parte, por normalizar a conversa sobre vulnerabilidade e fracasso. Nas empresas (tal como nas escolas e na sociedade em geral), é vital criar ambientes de segurança psicológica onde os erros sejam vistos como oportunidades de aprendizagem, e não como provas de incompetência. Não é possível inovarmos sem corrermos alguns riscos, pelo que há que mobilizar mais curiosidade e coragem do que propriamente julgamento e medo. A nível individual, o caminho começa pelo autoconhecimento e por desafiar narrativas internas disfuncionais — algo que pode ser potenciado com apoio profissional.

Estudos apontam que cerca de 70% das pessoas experienciam a Síndrome do Impostor em algum momento da vida, mas entre as mulheres, especialmente em ambientes dominados por homens, a prevalência é maior.

Porque Síndrome da Impostora, no feminino? Esta é uma questão que afeta mais as mulheres?

Embora o fenómeno possa atingir qualquer pessoa, a verdade é que a investigação mostra que as mulheres e as minorias são desproporcionalmente afetadas. Vários estudos indicam que fatores sociais e culturais — como a desigualdade de género, a dupla jornada, a falta de modelos femininos em cargos de liderança e as expectativas contraditórias sobre o que é ser uma “boa mulher” — alimentam este ciclo de autossabotagem.

 

É por causa dela, que vemos as mulheres sub-representadas nos altos cargos da sociedade, na liderança de empresas, na política?

A Síndrome da Impostora é um dos muitos fatores que contribuem para essa realidade, mas ao mesmo tempo a sub-representação de mulheres em altos cargos da sociedade também perpetua este fenómeno. Quando as mulheres duvidam das suas capacidades, estão mais propensas a recusar promoções, evitar posições de destaque ou não reivindicar o reconhecimento que merecem. Apesar de mais bem preparadas e terem mais estudos, as mulheres exigem de si mesmas mais requisitos para aceitarem certas oportunidades, comparativamente aos homens. Esta insegurança, somada à discriminação sistémica, perpetua a sub-representação feminina.

 

Há números que mostrem esta distribuição por género? E porque são menos afetados os homens? É uma questão cultural, de sociedades patriarcais?

Estudos apontam que cerca de 70% das pessoas experienciam a Síndrome do Impostor em algum momento da vida, mas entre as mulheres, especialmente em ambientes dominados por homens, a prevalência é maior. Isto reflete a estrutura social e as mensagens subliminares que recebemos desde cedo sobre quem “pertence” a certos lugares de poder.

 

De que forma poderemos atuar para minimizar o impacto desta síndrome? Pode deixar algumas dicas/conselhos para os nossos leitores?

Primeiro, é essencial reconhecer a síndrome pelo que ela é: um padrão de pensamento, não uma verdade. Depois, sugiro três passos práticos:

Reformular a narrativa interna — trocar a pergunta “E se eu falhar?” por “E se eu aprender?”.

Celebrar conquistas — manter um registo das vitórias, pequenas e grandes, para relembrar evidências objetivas das suas capacidades.

Pedir feedback regularmente — ouvir perspectivas externas ajuda a equilibrar a visão distorcida que a síndrome cria.

Mais do que combater a síndrome isoladamente, precisamos de reconfigurar ambientes para que a competência individual seja reconhecida e valorizada. Mais do que pontuarmos apenas as falhas, há que destacar também os sucessos, mais do que diabolizarmos o erro, há que torná-lo num fator vantagem com toda a aprendizagem que daí pode advir. Precisamos diferenciar o nosso valor pessoal do nosso desempenho e promover uma mentalidade mais flexível e de crescimento.

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