Estima-se que a procura global de proteínas aumente cerca de 50% até 2050. A forma como produzimos atualmente proteínas não é sustentável e há que procurar alternativas. Luísa Cruz, portuguesa, é cofundadora da MicroHarvest, startup de biotecnologia que nasceu na Alemanha com o objetivo de revolucionar este mercado. A empresa tem escritórios em Hamburgo e em Lisboa e está a investir em Portugal numa unidade piloto para a produção de proteínas sustentáveis, a partir de microrganismos. Esta startup foi considerada recentemente uma das empresas europeias mais promissoras na construção de um sistema de produção alimentar de emissões zero. A MicroHarvest já realizou um investimento de 10 milhões de euros desde a sua criação e está a aumentar a sua equipa, atualmente de 15 pessoas.
Quando foi fundada a MicroHarvest e o que motivou a criação deste projecto?
A nossa CEO, Katelijne Bekers, tem um mestrado em Biotecnologia e um MBA executivo. Em 2021, enquanto trabalhava em vendas para uma grande produtora de ingredientes na Europa, teve consciência da oportunidade de mercado na procura de proteínas alternativas sustentáveis. Uma noite, depois de algumas cervejas com amigos da mesma área, apercebeu-se que existem soluções tecnológicas ao nosso alcance para oferecer melhor proteína e que podem responder às necessidades atuais de mercado. Com o apoio da FoodLabs, lançou, em março de 2022, a MicroHarvest.

Como é que surge uma portuguesa na criação desta startup e qual é o seu percurso profissional?
Eu e a Katelijne conhecemo-nos em 2009, em Delf,t durante o nosso doutoramento. Trabalhámos muito bem juntas, com um grande respeito mútuo, e ficámos amigas desde então. Quando ela fundou a MicroHarvest eu ainda estava a trabalhar nos Países Baixos. Ela começou a sondar a minha disponibilidade bastante cedo. Assim que lhe disse que estava a pensar voltar para Portugal com a minha família, fez-me a proposta de me juntar a ela enquanto CTO e trazer a MicroHarvest comigo para Portugal. Nos Países Baixos trabalhei em diversas áreas e funções de I&D numa empresa de B2B. Esta combinação de experiência técnica e de liderança, juntamente com a incursão que fiz por Inteligência Competitiva e Análise de Mercados tornou-me uma boa escolha para a posição e para os desafios na MicroHarvest. Aliás, assim que ela me apresentou o projeto para a MicroHarvest, fiquei convencida. Também eu acredito que os microrganismos são as fábricas de proteína mais eficazes do mundo, dos quais podemos fazer ingredientes de proteína sustentáveis.
“Alimentamos microrganismos com açúcares disponíveis em produtos secundários da atividade agrícola, como por exemplo, melaços”
Como se deu a entrada do terceiro cofundador?
Enquanto isto se passava, os nossos investidores apresentaram-nos o nosso terceiro cofundador: Jonathan Roberz. Ele era perfeito para COO: já tinha iniciado e vendido com sucesso uma empresa de tecnologia e tem uma paixão infinita por revolucionar o sistema alimentar para torná-lo mais sustentável. Adicionalmente, tendo ele uma formação técnica fora de Biotecnologia, vimos imediatamente que podia contribuir para elevarmos e revolucionarmos o que é definido como standard. Em janeiro de 2022 juntámo-nos os dois à Katelijne e à equipa de dois cientistas que ela já tinha recrutado e iniciámos assim a nossa ambiciosa jornada. Hoje, pouco mais de um ano depois, temos 15 funcionários, dois escritórios, e um investimento de 10 milhões de euros.
O que faz exactamente a MicroHarvest?
A procura global por proteínas espera-se que vá aumentar 50% até 2050. Infelizmente, a forma atual como produzimos não é sustentável. Queremos por isso oferecer uma solução que possa ser aplicada em toda a cadeia de valor alimentar. Muitos não sabem, por exemplo, que são pescados cerca de 13 milhões de toneladas de peixes para serem transformados em ração para o peixe que comemos. Seria o equivalente a capturarmos cerca de 85 mil milhões de sardinhas, só para alimentarmos outros peixes. É um ciclo altamente insustentável. A indústria de alimentos para animais de estimação também está a crescer muito rápido e precisamos de mais ingredientes para responder a este crescimento de procura com proteína de qualidade que possa estar disponível para todos. A MicroHarvest é proprietária de uma tecnologia que utiliza fermentação para produzir ingredientes proteicos. Simplificando: alimentamos microrganismos com açúcares disponíveis em produtos secundários da atividade agrícola (por exemplo, melaços). Os nossos microrganismos multiplicam-se extremamente rápido, produzindo proteínas de uma forma muito eficaz. O processo é natural e sem recurso a organismos geneticamente modificados.
“São pescados cerca de 13 milhões de toneladas de peixes para serem transformados em ração para os peixes que comemos. Isto não é sustentável”.
Qual é o vosso produto final e qual é a vantagem dos vossos produtos face à concorrência?
Gostamos de dizer que nossos ingredientes proteícos são produzidos de maneira “pequena, melhor e mais rápida”. Os nossos produtos finais contêm mais de 60% de proteína (o peito de frango magro tem cerca de 40%), vitaminas, aminoácidos e minerais naturais. Eles também são 100% livres de alergénios alimentares. Dependendo da formulação, os nossos produtos podem ser usados para alimentar aquaculturas (como camarão ou salmão), para fornecer proteína saudável para a comida de animais domésticos ou, eventualmente, na comida humana. O que é único sobre o que fazemos prende-se em como nos comparamos com as alternativas. Por exemplo, relativamente à produção de carne bovina, somos extremamente rápidos – cerca de 24h da entrada à saída -, usamos menos 99% do espaço e emitimos menos 70% de carbono. Além disso, podemos produzir em qualquer lugar do mundo, em qualquer clima, 365 dias por ano.
Recolheram cerca de 8,5 milhões de euros na primeira fase do investimento. Quem são os vossos investidores e quando acontecerá a próxima fase de financiamento?
Fechamos a ronda A em setembro do ano passado. Recebemos o apoio de empresas de capital de risco que atuam no setor do impacto e ação climática, entre os quais as Astanor Ventures, a Hapiness Capital, a FoodLabs e a Faber.
“Relativamente à produção de carne bovina, somos extremamente rápidos, usamos menos 99% do espaço, e emitimos menos 70% de carbono”.
Têm planos para instalar uma fábrica de proteínas na área de Lisboa. Já encontraram a localização certa para instalar a unidade? Qual o investimento?
Continuamos a contratar a um ritmo acelerado em Lisboa e Hamburgo, para expandir os nossos laboratórios e equipas de I&D e operações. Estamos a instalar a nossa unidade de produção piloto em Lisboa. A escolha foi motivada pelo facto de Portugal se ter posicionado nos últimos anos na vanguarda da inovação no espaço tecnológico. Há abundância de talento para biotecnologia e empreendedorismo. Lisboa tornou-se também um local atraente para as pessoas interessadas em inovação viverem. E este é um fator extremamente importante para uma startup como nós: ter a certeza que conseguimos recrutar as melhores pessoas. Estamos agora a proceder à análise regulatória e esperamos iniciar a produção a larga escala nos próximos 12 a 18 meses. Nesta altura não nos é possível divulgar o valor do investimento.

Como é que este investimento vai contribuir para o crescimento da vossa empresa?
O investimento na unidade piloto em Lisboa vai possibilitar-nos produzir protótipos dos nossos produtos a uma escala que os nossos potenciais clientes possam testar nas suas formulações. Ter esta unidade disponível impulsionará a nossa entrada no mercado. Mas, principalmente, a unidade piloto permite-nos ser ágeis e inovadores em melhorar o nosso processo de produção a larga escala. Vamos conseguir testar e desenvolver novos conceitos antes de os aplicar à produção. Esta unidade piloto é o que vai permitir à MicroHarvest manter a sua vantagem competitiva.
Quais são os vossos objetivos de crescimento?
O nosso objetivo é tornar-nos num dos maiores produtores globais no espaço de proteínas alternativas. Sei que soa extremamente ambicioso, mas só pensando a esta escala é que verdadeiramente conseguiremos ter o impacto necessário para garantir o futuro da cadeia de valor alimentar de maneira sustentável e escalável. E acreditamos ter a equipa e os planos concretos para concretizar este objetivo.
Qual é a sua maior ambição? Para a MicroHarvest e para a sua vida?
Na MicroHarvest, compartilhamos todos um ADN ousado e ambicioso. Queremos ultrapassar limites. Queremos gerar impacto e promover mudanças. Mas felizmente trazemos já a experiência que nos ajuda a manter, pelo menos um pé assente na terra para mantermos um sentido de pragmatismo e realidade sobre os obstáculos que temos à nossa frente. Enquanto cofundadora, claramente partilho destas ambições e valores da MicroHarvest. É impressionante como ganho energia a cada passo e com cada desafio em tornar a nossa visão numa realidade. E fazê-lo enquanto posso gozar da proximidade e disponibilidade para a minha família é algo que prezo muito e que pessoalmente contribui para o sucesso destes primeiros passos. Não posso também deixar de referir que, enquanto portuguesa, estou feliz por poder trazer para o país uma das sedes de uma empresa com tanto potencial transformador. Portugal tem uma reserva incrível de talentos, grandes cientistas, e líderes empresariais reconhecidos internacionalmente. Às vezes basta mesmo dar um passo em frente e partir para a mudança. Afinal, quem não arrisca não petisca. Espero que a MicroHarvest seja um dos muitos catalisadores de mudança e atores globais que chamam Portugal de lar.