Tatiana Pinto, a jogadora portuguesa que deixou esta época o Levante e ainda não anunciou o seu próximo clube, é uma das Navegadoras que está na capa digital de julho da Forbes Portugal (leia a reportagem completa aqui). Esta é a segunda parte da conversa com a atleta que jogou a agora profissional Liga F e que se encontra num dos pontos mais altos da sua carreira.
Como é que surgiu o interesse pelo futebol e como tem sido o teu percurso?
Desde que me lembro sempre adorei jogar futebol. Acho que foi mesmo uma coisa que cresceu comigo. Infelizmente naquela altura não havia formação de futebol feminino, então tive de ir para uma equipa masculina jogar futebol misto. Era a única rapariga, tinha cerca de seis ou sete anos, comecei a jogar no Oliveira do Bairro Sport Clube. Fiz a minha formação toda aí, até aos 12 ou 13 anos, que era a altura em que tinha de mudar porque já não podia continuar a jogar com rapazes. Entretanto fui para uma equipa sénior de feminino, no Fermentelos, que também é uma equipa do distrito de Aveiro. Depois surgiu o interesse do Clube de Albergaria e aí as coisas já foram um bocadinho mais a sério. O clube tem uma história muito grande no futebol feminino português, era e é uma equipa muito competitiva e que se reinventa a cada ano que passa. Fiz aí algumas épocas e depois como eu queria muito viver do futebol e em Portugal isso não era possível, aceitei a oportunidade que tive de ir para a Alemanha. Fui para o SC Sand, na altura militava na segunda divisão e acabámos por subir à primeira. Como era muito nova, quando fui para lá foi um choque muito grande de realidades porque na Alemanha o futebol feminino já estava muito mais desenvolvido. Talvez não tivesse a maturidade que deveria ter para aquele desafio naquele momento. Regressei a Portugal e joguei seis meses no Valadares, foi uma passagem muito curta. Depois surgiu a oportunidade de ir para Inglaterra. O Bristol foi um ponto de viragem para mim, foi onde meti na cabeça que realmente era aquilo que queria para a minha vida. Fiquei lá duas épocas, depois recebi uma chamada do Sporting a dizer que iriam avançar com um projeto de futebol feminino, que queriam trazer algumas jogadoras de fora para a equipa. Era um projeto realmente muito interessante e eu podia ser profissional no meu país, por isso aceitei. Pelo Sporting passei momentos muito bons, outros menos bons, o futebol é assim, e depois de cinco anos senti que estava estagnada, não sentia que estava a evoluir na minha carreira e decidi sair e vir para Espanha. Vim para o Levante e aqui estamos.
Neste momento, a nível individual, pareces estar num dos pontos altos da tua carreira
Concordo plenamente com isso, é provavelmente a minha melhor época. Estes dois anos foram muito bons a nível individual. Estou a viver isso com muita naturalidade, sou sincera, porque quando saí do Sporting e aceitei o desafio de vir para o Levante sabia que era capaz e que tinha todas as capacidades e qualidades para me afirmar aqui. Dei muito de mim, investi muito em mim, para que hoje seja a jogadora em que me tornei. Isso é um trabalho invisível que no final de contas não é nada invisível. Estou se calhar a colher os frutos daquilo que tenho vindo a fazer durante estes dois anos e estou muito contente com isso.
Que esforços foram esses?
Desde muito nova, toda a minha família sempre me incutiu uma educação em torno do trabalho. Eu sempre vi a minha família a trabalhar muito e a sacrificarem-se muito uns pelos outros. Talvez tenha herdado essa parte deles e ainda bem que assim foi. Na minha cabeça sempre disse que para ser realmente competente naquilo que faço, se calhar tenho de trabalhar mais do que o normal. Foi isso que decidi fazer, trabalhar extra, trabalhar em casa, procurar a ajuda de um nutricionista com quem neste momento trabalho 24 horas sobre 24 horas e realmente foi das melhores decisões que tomei em toda a minha vida porque acho que é uma mudança muito grande. É esse tipo de trabalho invisível, são pequenas coisas que depois fazem todo o sentido na hora da competição. Eu sou muito esse tipo de jogadora, aquilo que depende de mim eu vou ter de ser a melhor do mundo a fazê-lo. Há coisas que nós não controlamos, mas há outras que nós efetivamente controlamos, e nessas coisas eu tenho de ser a melhor do mundo.

O que é que muda quando uma liga se torna profissional?
Muda muita coisa, mas essencialmente o que noto mais é a competitividade das equipas. Obviamente que vai sempre haver uma discrepância, porque há equipas que têm uma capacidade financeira muito mais elevada que outras, isso é comum até no masculino, mas mesmo as equipas que não têm uma capacidade financeira muito grande, têm planteis e estruturas bastante competentes e competitivas. Ou seja, não vai haver jogos em que as coisas serão fáceis. Depois também há muitos mais apoios às equipas, a Liga F investe muito dinheiro em todas as equipas, o próprio governo aqui em Espanha dá incentivos para que todas as equipas femininas melhorem as suas infraestruturas, isso também é uma debilidade em Portugal. Melhorar infraestruturas do feminino nos clubes em Portugal é urgente porque acho que é mesmo um tema muito importante e está também associado ao tema das lesões. Acho que era imperativo que isso pudesse mudar com alguma urgência, sou sincera. E depois os direitos televisivos, logicamente. Aqui também há muito mais dinheiro porque a DAZN comprou os direitos televisivos da Liga F e transmite todos os jogos em direto. Inicialmente era gratuito, mas claro eles também querem obter retorno financeiro, o que é compreensível, e agora há um pack exclusivo de futebol feminino e dá para ver a liga espanhola, a liga inglesa, alguns jogos da liga dos Estados Unidos e, se não estou em erro, alguns jogos da liga alemã. É criar um produto que seja apetecível para marcas, patrocínios, televisões. Acho que é isso que muda.
Trata-se da necessidade de a liga criar um produto apelativo, mas ao mesmo tempo existe a questão de a sociedade não olhar para o futebol feminino como devia?
Claro, sim. Acho que em todos os países esse foi o grande desafio, mas há países que já estão muito mais à frente do que Portugal. Nós estamos a fazer o nosso caminho bastante bem, pouco a pouco, passo a passo, mas estamos a percorrer o caminho que esses países também já fizeram antes. Acho que os passos estão a ser bem dados, mas acho que é urgente mudar algumas coisas em Portugal e acredito que isso estará planeado nos próximos anos.
Qual é o papel da seleção neste crescimento do futebol feminino em Portugal?
Acho que o papel da seleção tem sido preponderante no que toca a atrair os adeptos, os portugueses, a cada vez olharem mais para nós e cada vez ficarem mais empolgados e entusiasmados com os nossos jogos e irem aos estádios, verem e acompanharem. Acho efetivamente que temos tido um percurso muito giro e esse crescimento também está a ser visível nos adeptos que se deslocam aos estádios para nos ver.

Foste uma das jogadoras que comentou a cobertura, e falta dela, feita após a qualificação para o Mundial. Esperavas que as coisas fossem daquela forma ou foi uma surpresa?
Foi um bocadinho dos dois. O que eu gostava era que efetivamente tivéssemos a cobertura que merecíamos porque acho que era mais do que merecido, foi um momento histórico e a seleção portuguesa não tem feito outra coisa a não ser história. Acho que era o mais justo. Agora, o que aconteceu já estava à espera, mas acho que também é importante que as jogadoras falem ou que mostrem o seu descontentamento público, acho que temos liberdade de expressão para o fazer e ainda bem que assim é. Mostrar o nosso desagrado, sim, acho isso importante também para ver se as coisas mudam porque não achámos justo.
O que é que lembras do jogo do play-off intercontinental?
O jogo foi impróprio para cardíacos, mas quando a Carole marcou o golo de penalti a nossa prioridade era controlar o jogo, mantê-las mais longe da nossa área. Ou seja, ali era mesmo o coração a falar mais alto, pouca racionalidade no que toca ao jogo. Foi espetacular, falar nisso é reviver um dos melhores momentos talvez da minha carreira. Era uma coisa que eu e todas nós desejávamos muito, inclusive todas aquelas que passaram pela seleção e que permitiram que nesse momento fossemos nós as privilegiadas. É sentir o peso de que muitas gerações passaram ali, lutaram e trilharam esse caminho para que nós naquele momento tivéssemos sido as sortudas por estar ali a viver aquele momento. Foi nostálgico, foi um misto de emoções na verdade.