Virgilio Martínez não é apenas o chef por trás do restaurante Central, em Lima – eleito o número 1 do mundo em 2023 pela prestigiada lista The World’s 50 Best Restaurants. É um contador de histórias, um catalisador de movimentos, um visionário que transformou a gastronomia peruana num poderoso vetor de identidade, inovação, inclusão e desenvolvimento.
Durante a conferência “Chefs, Economia e Sustentabilidade – Um Diálogo Global à Mesa”, realizada no Porto, Martínez foi entrevistado pelo professor Miguel Poiares Maduro, numa conversa íntima e reveladora que percorreu o seu percurso, a construção do Peru como destino gastronómico de excelência, e as múltiplas dimensões – sociais, culturais, ambientais e até espirituais – da gastronomia contemporânea. Uma conversa que revela como a gastronomia pode, literalmente, mudar o mundo.
Virgilio, bem-vindo. Vamos começar pelo início. Imaginava, quando começou a cozinhar, que chegaria onde está hoje?
Obrigado pelo convite, é uma alegria estar aqui. Se me perguntarem como cheguei até aqui, a resposta mais simples é que vim de avião para o Porto (risos). Mas a verdade é que nunca imaginei isto. Aos 18 anos, queria apenas cozinhar – e viver disso. Sonhava ter um restaurante suficiente para sustentar uma equipa e continuar a fazer o que gosto. Nunca pensei em prémios, em fama ou reconhecimento. Mas a minha obsessão pelo detalhe, a disciplina e a forma como me entreguei ao trabalho foram abrindo portas. De um restaurante pequeno e local, com clientes do bairro, passámos a ter visibilidade internacional. E isso mudou tudo: hoje, o Central é um projeto com impacto muito para lá das paredes da cozinha.
Considera-se hoje mais do que um chef?
Sim, sem dúvida. O mundo mudou e eu tive de mudar também. Não sou apenas cozinheiro ou empresário. Sinto que sou também alguém ao serviço de uma comunidade, um facilitador de encontros e aprendizagens. Represento um país com uma diversidade imensa – natural, cultural, artística – e sinto responsabilidade de transmitir isso através do nosso trabalho. A inovação é uma parte central da nossa abordagem, mas sempre amparada por outras pessoas e saberes. Trabalhamos em rede, em colaboração constante. A palavra-chave é multidisciplinaridade.
Como é que isso se reflete no processo criativo?
No nosso centro de pesquisa – a Mater Iniciativa – trabalhamos em equipa: eu, a Pia, a Malena e muitos outros investigadores e criadores. Começámos como jovens rebeldes a tentar quebrar regras, mas percebemos que para quebrar as regras, é preciso conhecê-las primeiro. Cozinhei em grandes restaurantes na Europa e nos EUA, cozinhas com estrelas Michelin, onde aprendi imenso. Mas quando regressei ao Peru, percebi que aquilo não se aplicava ali. Num país com 3.400 variedades de batatas, como se faz um puré à Robuchon? Aquilo que chamavam inovação no hemisfério norte não fazia sentido num país que já tem uma riqueza ancestral imensa. Foi isso que moldou a nossa criatividade.
Então o território é um elemento criativo central?
Completamente. Trabalhamos com ecossistemas. Os nossos pratos são mapas comestíveis do Peru. Do mar às montanhas, da Amazónia ao deserto, cada prato comunica um território e uma vivência. E queremos que cada cliente seja transportado, que experimente algo genuíno. A comida sempre foi uma forma de comunicação. E, no nosso caso, é uma forma de comunicar o Peru – e muito mais.
Essa dimensão coletiva e de comunidade está muito presente no que diz. Sente que isso é parte do ADN latino-americano?
Sim. Nós, latino-americanos, temos uma forma muito própria de ver o mundo. Em Lima, crescemos a partilhar – receitas, técnicas, cozinhas. Em vez de competir, colaborámos. E isso fez toda a diferença. Criou um movimento, uma identidade. A cozinha tornou-se o eixo para transformar Lima numa referência mundial. Quando percebi que o meu crescimento era o crescimento dos outros, ganhei um propósito. A alta gastronomia não é só luxo – é sentido, é impacto, é conexão.
E como vê o papel das escolas de hotelaria neste novo paradigma?
É fundamental que as escolas ensinem mais do que técnica. A cozinha não é só o que chega ao prato. É hospitalidade, escuta, humanidade. O cozinheiro de hoje não pode ser o chefe autoritário de antigamente. Tem de criar um ambiente de paz, de gratidão. Temos o privilégio de receber pessoas que vêm experimentar algo – e nos agradecem com sorrisos, com emoção. Esse é o verdadeiro luxo.
O caso do Peru é admirável. Chegaram ao ponto em que há mais turistas a ir ao país pela comida do que para visitar Machu Picchu. Como se construiu isso?
É impressionante, de facto. O Peru tem 500 anos de fusão cultural: espanhóis, italianos, africanos, japoneses, chineses… tudo se cruzou naturalmente. A isso junta-se um legado inca e pré-inca de agricultura e espiritualidade. Mas o que mudou foi a perceção. Há 25 anos, Lima não era um destino turístico. A estratégia foi fazer com que os turistas ficassem um ou dois dias a mais – e isso começou com a comida. Deixaram de comer só ceviche ou beber pisco sour, e passaram a procurar experiências gastronómicas completas, com ingredientes 100% peruanos e uma narrativa própria. Criámos um produto único.
E também transformaram comunidades inteiras…
Sim. Trabalhamos com mais de 300 pessoas das comunidades andinas. Abrimos um restaurante a 3.800 metros de altitude, perto de um circuito arqueológico, e percebemos que, para ser sustentável, tinha de haver envolvimento da comunidade. Cultivamos juntos, construímos relações de confiança. E vimos o impacto: pessoas que voltaram a plantar alimentos ancestrais, que deixaram de consumir alimentos processados para voltar às suas raízes. Isso é bem-estar. Isso é sustentabilidade.
A sua sustentabilidade é muito mais do que ambiental.
Exatamente. É cultural, social, económica. Revalorizámos ingredientes esquecidos – e hoje há quem pague 20 vezes mais por uma semente de 200 anos. Mas isso exige educação, comunicação e imaginação. Temos de mostrar o valor do que fazemos.
E sente que essa filosofia está a ser replicada?
Esperamos que sim. Quando alguém se inspira no que fazemos, isso não é uma cópia – é progresso. As próximas gerações estão a fazer coisas incríveis. Já estão aí. Não é o futuro – é o presente.
A saúde tornou-se também uma dimensão importante da gastronomia?
Sem dúvida. Antes queríamos mostrar quão criativos éramos. Hoje, queremos ser autênticos, coerentes com o tempo, o lugar, a estação. Servimos menus mais equilibrados, mais conscientes. E isso é válido também para os nossos produtores – o bem-estar tem de ser transversal.
Como vê a tensão entre a globalização e o “zero quilómetro”?
As tendências são ferramentas. O perigo é tornarem-se fins em si mesmas. Sou contra seguir modas cegamente. O autêntico é o que permanece. Se for local, ótimo. Se for global, mas com sentido, também. O importante é não nos deixarmos distrair num mundo saturado de estímulos.
E como escolhe as tendências que acompanha?
Com base na experiência. Os erros ensinam-nos o que não seguir. Há tendências boas – e consumidores que as valorizam. Temos de saber filtrar.
E a inteligência artificial? Já está a ter impacto na gastronomia?
Sim, e vai ter cada vez mais. Há startups que analisam tendências de consumo através de dados, redes sociais, algoritmos. Isso vai influenciar a restauração, quer queiramos quer não. O segredo é entender, adaptar e integrar. Não se trata de resistir, mas de saber como usar.
Para terminar, um exercício rápido. Se a sua cozinha fosse um artista, quem seria?
VM: Um tenor: Juan Diego Flórez. Um escritor: Mario Vargas Llosa. E um desportista? Cristiano Ronaldo. Mas também gosto muito de Espinoza. Estava a ler um texto sobre a busca da verdade. Acho que a cozinha também é isso – uma busca.
Uma busca da verdade no prato. Muito obrigado, Virgilio.