Do desejo de melhores condições de trabalho nasceu em 2014 o CAIDI — Centro de Apoio e Intervenção no Desenvolvimento Infantil. Mas rápido as três fundadoras terapeutas da fala de Torres Vedras — as irmãs Joana e Catarina Miguel e a prima Margarida Tavares — perceberam que não estavam apenas melhorar as suas condições laborais, num mercado precarizado: estavam a lançar as bases de um apoio multidisciplinar (terapia da fala, psicomotricidade e psicologia) fundado na avaliação rigorosa e recolha sistemática de dados. Hoje este passado permite-lhes publicar os primeiros artigos de investigação científica através do núcleo de investigação da empresa, o NIDCAIDI.
Apesar do reconhecimento entre pares, na região Oeste (e um pouco por todo o país) 0 CAIDI é melhor conhecida pelo apoio que prestou a crianças com todo o tipo de necessidades, adaptando o preço dos apoios à realidade socioeconómica das famílias. As fundadoras falam em valores que vão além do lucro e garantem que foi o rigor e a vontade de chegar a todos que fez a empresa crescer organicamente.
Como começou o CAIDI? De que forma a vossa experiência profissional moldou a empresa?
Joana Miguel – Formámo-nos as três em Alcoitão. Trabalhei no Ministério da Educação, sempre em contexto escolar, sempre ligada à infância. Trabalhei, mais tarde, nos centros de recursos para a inclusão, quando a lei mudou [e estas terapias passaram a ter respostas nas CERCIs]. O que eu sentia, além da instabilidade no trabalho (nunca sabíamos se íamos ter trabalho no ano seguinte ou não), era uma angústia associada a só podermos intervir num número estabelecido de crianças e já estavam definidas no início do ano. Sabíamos que havia tantas outras que precisavam de ajuda e que nunca tinham. Foi assim durante dez anos até criarmos o CAIDI.
Catarina Miguel – Eu comecei também por trabalhar dois anos pelo Ministério da Educação e tinhamos boas condições, mas com a mudança na lei ficámos falsos recibos verdes. Foi no ano em que decidi ficar só a dar consultas particulares que a Margarida acabou o curso.
Margarida Tavares — Quando eu acabei o curso havia uma grande precariedade, não havia contratos para ninguém — só recibos verdes em clínicas ou privados. Começámos a entrar numa fase em que as clínicas tentavam fazer protocolos com os estado em que se pagava ao terapeuta 1,50€ por sessão. O que tentavam fazer para lucrar era juntar três ou quatro crianças numa sessão, o que é impossível. Não havia grandes condições de trabalho. Surgiu entre nós a vontade de termos mais estabilidade, construir uma equipa — porque também já tínhamos o hábito de partilhar dúvidas e experiências.
C.M. — Queríamos também dar apoio a mais crianças, não só aos casos muito graves. No contexto particular havia essa possibilidade. Nós sabíamos que havia necessidades em várias escolas e começámos a trabalhar em escalões, conforme o rendimento das famílias. Formamos as três uma espécie de cooperativa, em que trabalhávamos todas para o mesmo e depois dividíamos.
M.T. — A cooperativa permitia ter escolas que pagavam muito por terem rendimentos mais altos e outras, como IPSS, onde os pais não tinham forma de pagar mais. Eu lembro-me que as sessões mais baratas eram sete euros, mas era o justo. Tínhamos famílias que nos pagavam com moedas.
A precariedade nesta área estava a deixar muitas crianças sem resposta?
M.T. — Estas terapias não tinham o devido valor, era algo que não era bem comunicado. Quem ia para a terapia da fala eram crianças com multideficiência, casos mais graves. Situações que tinham impacto na vida da criança eram arrastadas ou empurradas para outras áreas que não faziam tanto sentido. As dislexias muitas vezes eram empurradas para a psicologia e centro de explicação.
J.M — E iam trabalhar aspectos emocionais em vez de trabalharem os aspetos da dislexia em si, porque é normal que uma criança disléxica tenha dificuldades emocionais, é exposta todos os dias à sua área mais sensível.
O CAIDI também apanhou uma nova fase da terapia da fala no país.
J.M. — E acho que contribuímos para isso. Nessa altura ainda não estávamos no âmbito nacional, mas eu tenho a certeza que nós as três contribuímos muito para aquilo que é a terapia da fala aqui nesta região do Oeste, para o reconhecimento da profissão e importância do trabalho. Acompanhámos muitos miúdos e fizemos a diferença na vida de muitas famílias e isso tem força. Quando saltámos para outras zonas, sentimos barreiras que já não sentíamos há muito tempo.
Lembram-se dos momentos que confirmaram que esta empresa fazia sentido?
M.T. — Desde o início acreditamos que o rigor, a inovação e a exigência são fundamentais para fazer a diferença no desenvolvimento infantil. Os sinais de que estávamos no bom caminho vieram das pessoas: dá-nos muito prazer poder dizer que a nossa expansão na região aconteceu porque os professores que se deslocaram ou os meninos que mudaram de escola pediram que o CAIDI também fosse para os seus novos agrupamentos. Quer dizer que a nossa resposta é a melhor — seja na terapêutica, seja na formação para professores. Este ano, os eventos científicos também foram um ponto de viragem para nós, pelo reconhecimento. Temos estado presentes a nível nacional e internacional com bastantes publicações e estudos que temos conseguido finalmente publicar, através do NIDCAIDI, o nosso núcleo de investigação. Desde o dia um que investimos muito em investigação porque somos exigentes, consideramos que é uma área imprescindível de investimento, sem ela não conseguimos ser os melhores. Acreditamos que o estudo e a exigência nos diferencia no mercado e é uma das nossas imagens de marca, seja na terapia da fala, psicomotricidade ou da psicologia.
Como se foi processando o crescimento da empresa até aos 80 trabalhadores de hoje?
J.M. — A nossa expansão nacional deve-se à Associação de Jardim-Escola João de Deus. Nós desenvolvíamos a nossa ação aqui em Torres Vedras, em 2017. O Diretor da Associação gostou do nosso trabalho e fez-nos uma proposta que nos pareceu um pouco louca: “eu quero ter esta ação inclusiva e de acompanhamento às crianças em todos os jardins-escola João de Deus” — são 56!
Nessa altura quantas pessoas tinha a vossa equipa?
M.T. — Não chegávamos a 20.
J.M. — Desde o início que cada pessoa que íamos pondo era um prejuízo inicial. Só a partir do momento em que essa pessoa ficasse com o horário completo é que começaria a dar lucro.
C.M. — Ao início ainda tínhamos muito aquele pensamento cooperativo: mesmo que não desse lucro o que era preciso era dar resposta.
M.T. — Começámos a contratar especialmente para fazer as licenças de maternidade — a Catarina ficou grávida. Mas quando a Catarina regressou, essa pessoa já não se foi embora.
J.M. — As contratações seguintes ainda foram assim, por causa de gravidezes e sempre a conseguir dar mais resposta a mais crianças.
C.M. — A nossa luta sempre foi dar as condições de trabalho que queríamos ter tido. As nossas colaboradoras — porque a grande maioria das terapeutas da fala são mulheres — sempre começaram com contrato de trabalho e mais dias de férias do que o mínimo: 32 dias úteis.
J.M. — Há algumas pessoas que preferem trabalhar em prestação de serviços e, mesmo esses, têm um bónus em Agosto. A dada altura do crescimento contratamos uma pessoa para ficar com a parte administrativa e foi aí que conseguimos libertar-nos desse lado para pensar noutras coisas, para pensar em alargar a equipa nos sítios onde já dávamos resposta — tínhamos cada vez mais referenciações.
A formação que dão impulsionou também este crescimento? Como uma forma de diversificar receitas?
C.M. — Inicialmente foi uma consequência do que já fazíamos. Nas escolas, o nosso trabalho com as crianças não é só dentro de quatro paredes. Temos de falar todos a mesma língua e conseguir fazer um bom trabalho e por isso começámos a dar formação à comunidade educativa, pais.
J.M. — Todas estas formações foram sempre gratuitas, não nos fizeram crescer em termos monetários. É um complemento ao nosso bom trabalho.
C.M. — Com os novos técnicos que fomos contratando, com o NIBCAIDI, cada vez mais a nossa formação está a ser também feita para técnicos especializados. É aqui que queremos ser sustentáveis financeiramente.
Já deixaram claro que há uma motivação moral naquilo que fazem. Isso impediu em algum momento a sustentabilidade financeira da empresa?
C.M. — Essa é a nossa origem e o nosso crescimento também se deve à responsabilidade social, por isso não a vemos como um custo, mas um investimento no nosso propósito. Temos conseguido organizar-nos, o crescimento está a correr bem.
Apesar dos mais de dez anos, ainda falam em investir para colher no futuro.
J.M — Não perdemos a nossa visão nem os nossos valores (monetários também). Para conseguirmos fazer isso temos de inventar maneiras novas de ganhar dinheiro. Sabemos a forma como trabalhamos e as limitações que impomos, como os valores a cobrar não serem absurdos. Isto é difícil de equilibrar. A forma é diversificar o que “vendemos”. Diminuirmos a sazonalidade da nossa intervenção, mesmo que não seja dirigida diretamente às crianças.
Que perspetivas são abertas pelas novas tecnologias nos campos da terapia da fala, motora e outras?
J.M. — A tecnologia serve para reforçar a nossa visão: facilitar o trabalho dos terapeutas, personalizar a terapia e garantir que nenhuma criança fica sem apoio por dificuldade de acesso ao serviço — seja geográfico, seja económico. O limite é a nossa imaginação. Este motor está a acompanhar o nosso ritmo. A inovação no CAIDI foi sempre natural. Desde o início que nos preocupamos em automatizar processos, libertar as pessoas para fazerem o que importa: trabalhar bem com as crianças. Os nossos terapeutas trabalham muito porque o nosso nível de exigência é muito elevado. Sempre nos preocupámos em registar informações e criar ferramentas que depois nos ajudem a tomar melhores decisões clínicas com base nos nossos registos. Esta tecnologia que implementámos ajuda-nos a manter o padrão elevando suavizando a carga de trabalho. A teleterapia é outro exemplo. Para muitas empresas surgiu no contexto da pandemia, para nós já era um caminho a ser traçado por sermos uma equipa dispersa, que trabalha à distância.
A inovação no CAIDI deve-se também à nossa equipa, crescemos porque esta equipa é muito rica em ideias. Somos recetivas à realização de projetos piloto dentro do CAIDI. Já tivemos muitos, já surgiram coisas muito interessantes que não vêm sempre de cima, até porque temos uma hierarquia super horizontalizada. É normal numa equipa de muitas mulheres muito inteligentes, que trabalham bem e num ambiente em que podem ver os seus projetos crescer. Depois de estes projetos serem implementados — muitas vezes de graça — não ganhamos dinheiro com eles, mas podemos fazer estudos a partir deles e ganhamos uma equipa motivada, a trabalhar super bem, uma equipa mais informada, miúdos que evoluem, as escolas ficam contentes. Nós precisamos de dinheiro para sobreviver, mas na nossa maneira de ser não é só isso que nos motiva.
Querem aplicar a Inteligência artificial ao vosso trabalho. Como?
J.M. — É algo que já está a acontecer, não viemos só na trend. Temos todas uma costela nerd e sempre gostámos disto e agora está a nosso favor. Em 2020 começámos a lançar as bases para o NID e este projeto nasceu desta nossa cultura de organização e sistematização de dados. Desde o início fomos meticulosos na forma como recolhemos, estruturamos e analisamos a informação — e somos cada vez mais, porque sabemos a potencialidade que estes dados nos dão para tomar melhores decisões no futuro. Nós sempre demos prioridade a avaliações muito detalhadas, a relatórios muito organizados, à criação de perfis de desenvolvimento, mais do que de diagnósticos clínicos. Agora podemos começar a usar machine learning para identificar padrões, prever trajetórias de evolução e personalizar cada vez mais esta intervenção que é sustentada em avaliações muito detalhadas que sempre tivemos. Todos os nossos projetos de investigação desde 2020 já foram concebidos com esta realidade.
M.T.— Esta parte de elaboração de relatórios é realmente muito diferenciadora, fazemos uma coisa bastante elaborada e detalhada. O médico especialista ou do neurodesenvolvimento que vê um relatório nosso por norma tem sempre uma reação, fica sempre impressionado. Vão ver de onde é. Têm a informação toda de forma clara, com dados comparativos.
C.M.— E o relatório de um técnico que trabalha há dois anos é tão bom como o de um técnico que trabalha há mais, porque há muita supervisão.
É essencial para construir o NID.
J.M. — Sim. O que muita gente achou, no passado, que era um exagero, provou-se que não é. Para fazermos uma boa intervenção temos de ter uma boa avaliação. Ninguém consegue intervir eficazmente sem uma boa avaliação. Faz-nos confusão quando vem um relatório com meia dúzia de linhas. Sustenta-se a intervenção em quê? No CAIDI isso não acontece. Isto permite-nos ter dados organizados e com muita qualidade, homogéneos para poder comparar, algo que ninguém tem.
Quais os próximos passos do CAIDI num futuro próximo?
M.T. —Vamos continuar a investir na investigação científica, na partilha de conhecimento, tanto a nível nacional como internacional. Estamos a trabalhar para expandir a nossa rede de colaboração, dando sempre serviços de qualidade independentemente da localização e da condição socioeconómica, também através do investimento em tecnologia. Crescemos sem apoios externos, baseadas na nossa intuição e assim queremos continuar a crescer. Vamos continuar pelo caminho da inovação, sempre com base na ciência e no conhecimento.
Este conteúdo foi produzido em parceria com o CAIDI.