“Os médicos querem tratar doentes e não passar o tempo a tratar de papelada”. É este o mote que está na origem da startup Medgical.AI, que nasce com a missão de devolver tempo aos pacientes, libertando os médicos das tarefas burocráticas, utilizando para isso a Inteligência Artificial. No fundo, procura devolver a humanização aos cuidados e saúde, deixando para a tecnologia o que esta pode fazer bem feito.
Medgical, um trocadilho que procura misturar as palavras “médico” e “mágico”, (em inglês magical), nasceu de um problema concreto sentido pelo médico Bruno Castilho, 32 anos, durante a sua atividade em diversos hospitais. “Sou médico há seis anos e já trabalhei em alguns hospitais, como o de Coimbra, o de Faro, o de Gaia e o de Santarém. Sejam maiores ou mais pequenos, em todos me apercebi de um problema: quer eu, quer os meus colegas, passávamos mais de metade do nosso tempo a escrever no computador, em vez de estar mais disponíveis para os pacientes”. Detetado o problema, faltava agora a solução.
“Medgical AI é mesmo mágico para nós, porque é completamente disruptivo. Só de pensar que não tenho de passar metade do meu dia a escrever é logo muito mais agradável ir para o hospital, porque vou passar o meu tempo a fazer aquilo que gosto de fazer”, diz o médico fundador.
Como sempre foi um adepto da tecnologia na saúde, sobretudo na área que lhe é mais próxima, a cardiologia, começou a maturar uma ideia, cujo embrião já vinha, aliás, de um projeto em que participou há cerca de dois anos no Hospital de Santarém, liderado por um cardiologista seu colega. “Na altura construímos uma aplicação que vinha resolver um problema na ecocardiografia: como não tínhamos forma de consultar os valores de fontes fiáveis para utilizar em ecocardiografia, construímos então uma aplicação para responder a esse desafio. Esta foi uma aplicação muito bem aceite em cardiologia, com mais de cinco mil downloads. Portanto, desde o meu início como médico gostei sempre de inovar na área tecnológica”, explica Bruno Castilho.

Por isso, quando viu o aparecimento desta nova tecnologia de Inteligência Artificial de PLN, ou seja, de processamento de linguagem natural, apercebeu-se que esta poderia ser a solução para um problema que existe no Serviço Nacional de Saúde (SNS), como, aliás, em todos os sistemas, públicos ou privados, que é a burocracia médica. O processamento de linguagem natural consiste na área da computação que tem como função dotar os computadores da capacidade de entender a linguagem falada e escrita de uma forma idêntica à dos seres humanos. Graças à aplicação de tecnologias como o machine learning, o big data e a internet das coisas (IoT), o PLN atingiu já um nível bastante elevado.
Ou seja, há estudos que confirmam que os médicos passam cerca de 50% do seu tempo de trabalho a tirar notas das consultas, a escrever relatórios, a tratar de papéis, tempo este que é retirado aos doentes. “Neste momento temos quase um milhão e meio de pessoas sem médico de família, e em boa parte porque os médicos de família estão atolados com trabalho burocrático”, explica Bruno Castilho. Ou seja, para este responsável não se trata apenas dos cerca de 30 milhões de horas que são gastos, no SNS, com processos burocráticos: “é também porque nós, os médicos, gostamos de tratar de doentes, e os doentes não gostam que estejamos sempre ao computador e sem tempo para falar com eles”. Bruno Castilho conta uma história que mostra bem a situação atual: foi pedida a uma criança para desenhar um médico e a criança desenhou uma pessoa atrás de um computador. “Acho que isto ilustra muito bem a realidade que temos”, refere a propósito.
O nascer de uma solução
Ora, quando saíram estes algoritmos de processamento de linguagem natural, nomeadamente o GTP, a tecnologia, pela primeira vez, foi capaz de entender a linguagem humana. Bruno Castilho viu aqui uma solução para o problema que já detetara: “se tenho disponível uma tecnologia que é capaz de entender as nuances da linguagem humana, vou conseguir utilizar isto para fazer uma grande parte do meu trabalho burocrático, já que a tecnologia não é madura o suficiente para me substituir enquanto médico, mas é madura para fazer uma parte do trabalho, como escrever”. E assim começou a sua busca por uma equipa que o ajudasse a desenvolver este software. Aliado a um amigo, Eduardo Peres Noronha,engenheiro informático, montaram a ideia e inscreveram-se num programa de empreendedorismo, patrocinado pela farmacêutica Boehringer Ingelheim, com apoio da Ordem dos Médicos. Foram selecionados como finalistas e entraram num programa de mentoria. Foi aí que conheceram o professor e data scientist, Armando Vieira, com quem trabalharam a ideia, acabando este responsável por entrar como co-founder da startup. Atualmente são quatro os fundadores, pois juntou-se ainda à equipa inicial a médica Filipa Cordeiro.
“É que não queremos apenas tirar as notas em consulta, queremos ir mais além do que isso, porque tirar as notas em consulta representa 25% do tempo gasto em burocracia, e depois os outros 25% são gastos em notas de alta, relatórios clínicos, entre outros”, refere Bruno Castilho.
A participação neste programa deu-lhe o suporte necessário para saber que estavam no bom caminho e que o seu produto tinha aceitação no mercado. Acabaram por ganhar o terceiro lugar do prémio associado ao programa, o concurso de empreendedorismo BI Award 2023, o que lhes atribui um valor de seis mil euros.
Entretanto a equipa já desenvolveu o primeiro protótipo. Como vimos, os médicos ocupam boa parte do seu tempo de trabalho com tarefas como a elaboração de notas clínicas durante a consulta, o registo de resultados de exames de diagnóstico, a elaboração de relatórios clínicos, entre outros. Este excesso trabalho administrativo conduz a três situações: à perda de produtividade e de ineficiência dos sistemas de saúde, ao prejuízo na relação médico-doente, e ainda ao burnout nos médicos.
“Este primeiro protótipo é capaz de ouvir a consulta e de tirar as notas automaticamente. Ainda precisa de alguma otimização e tem de ser testado por outras especialidades que não a cardiologia. Mas aquele que era o grande desafio, o de colocar o software a ser capaz de fazer grande parte do trabalho burocrático e devolver a humanização à medicina, está conseguido”, explica Bruno Carrilho. O responsável diz ainda que “a nossa ideia, no futuro, é trazer isto para todas as profissões”.
“Esta tecnologia terá um grande impacto na eficiência dos sistemas de saúde, permitindo que se façam mais consultas, mais procedimentos e mais horas de cuidado assistencial”
Bruno Castilho refere que já existem algumas aplicações internacionais que fazem o mesmo, mas que o fazem apenas em inglês e com menos qualidade. “É que não queremos apenas tirar as notas em consulta, queremos ir mais além do que isso, porque tirar as notas em consulta representa 25% do tempo gasto em burocracia, e depois os outros 25% são gastos em notas de alta, relatórios clínicos, entre outros”, refere.
O projeto está a crescer com o apoio de alguns parceiros, nomeadamente com duas empresas de software, e já têm alguns investidores interessados, com quem estão em conversações. Todo o processo de colocação da aplicação no mercado é complexo, porque os fundadores da Medgical AI não querem trazer o produto ao cliente a qualquer custo. Querem sim conseguir um preço que permita democratizar esta tecnologia e que chegue a todos os médicos, numa primeira fase. Como conseguir isso? Bruno Castilho refere que é através de um grande poder computacional de dados, ou seja, “estamos a usar muitos softwares de open source, para diminuir os custos. Para tirar notas médicas, não podemos apenas usar o ChatGPT, temos mesmo de ensinar e treinar a nossa própria IA. Temos depois a parte do reconhecimento de voz e dos termos médicos específicos e tudo isto leva tempo e é muito complexo”. Neste momento o que aplicação já faz é conseguir, em tempo real, ouvir o som da consulta e devolver as notas clínicas de acordo com o que o próprio médico tiraria. Esta primeira função já está assegurada. “Agora temos é de expandir para todas as especialidades. Para já, estamos só com cardiologia, mas queremos a curto prazo expandir para todas as especialidades”, diz Bruno Castilho.
O modelo de negócio a aplicar
A Medgical estima vendas diretas para instituições de saúde em Portugal, incluindo 235 hospitais e 360 centros de saúde, e oferece um modelo de subscrição para médicos individuais. Ou seja, o seu modelo de negócio está assente no modeloB2B e também no B2C. A ideia é que tenha, para médicos individuais, um modelo de pagamento mensal ou anual, mediante desconto, com um período de teste grátis para que percebam o benefício que isto lhes confere. “Queremos começar por atacar o mercado de língua portuguesa. Isto pode ser feito de duas formas: chegando aos médicos individualmente, para que comprem a aplicação, e por isso temos tanta preocupação com o preço, e depois temos a possibilidade de vender aos hospitais porque isto lhes aumenta imenso a produtividade.”, refere o fundador.
A Medgical estima vendas diretas para instituições de saúde em Portugal, incluindo 235 hospitais e 360 centros de saúde, e oferece um modelo de subscrição para médicos individuais.
Além disso, a Medgical AI tem o mercado brasileiro debaixo de olho, uma vez que é de língua portuguesa. Avançar para outros idiomas poderá ser um passo mais à frente. A questão principal que isto levanta é que num software deste tipo há coisas que variam de país para país, em termos de notas médicas, existindo, por isso, alguma dificuldade acrescida. “Estamos a trabalhar com uma rede de médicos de diferentes especialidades que nos estão a ajudar a ajustar o software a cada especialidade. Claro que também será ajustado a cada país onde estivermos presentes”, explica. No futuro, Bruno Castilho entende que a aplicação também será ajustada a cada médico, com a função de deep learning, “ou seja, o nosso software vai ser capaz de aprender comigo o meu estilo de escrita para depois já saber aquilo que eu quero. Este é este o grau de personalização do nosso software”.
Quanto ao financiamento, esta está ainda numa fase muito inicial. “Estamos ainda a fechar muitas coisas. Estamos na fase de seed funding, já temos alguns investidores interessados, e estimamos num período de quatro ou cinco meses conseguir chegar ao mercado”, refere Bruno Castilho. Para já, sabe-se que entraram empresas com a Void, com um financiamento de 100 mil euros e a Microsoft Founders Hub com 150 mil euros.
Este responsável faz ainda um alerta: a aplicação não guarda dados clínicos dos doentes o que é importante do ponto de vista da segurança, e deixa o médico mais seguro de que os dados não vão ser utilizados para outra coisa. “Ou seja, o risco de utilizar aplicações que andam pela internet sem se conhecer bem a origem, é que podem extravasar dados médicos e isso pode ter consequências legais grandes. Portanto, estamos a desenvolver um software que seja impermeável a isso”, explica.
“Medgical AI é mesmo mágico para nós, porque é completamente disruptivo. Só de pensar que não tenho de passar metade do meu dia a escrever é logo muito mais agradável ir para o hospital, porque vou passar o meu tempo a fazer aquilo que gosto de fazer”, finaliza o médico fundador.