Isaac Sidney é presidente da Febraban, Federação dos Bancos Brasileiros, e esteve presente na Web Summit 2023, para dar uma masterclass sobre a vanguarda dos serviços financeiros digitais. Revelou, em entrevista à FORBES Portugal que a PIX, ferramenta de transferências ou pagamentos instantâneos tem cerca de 130 milhões de utilizadores, e movimenta cerca de 1,2 biliões de reais por mês. Disse ainda que o Brasil foi pioneiro na criação de websites para operações bancárias e também na criação de aplicações para mobile banking e que cerca de80% das operações são feitas em canais digitais, sobretudo no mobile banking e internet banking.
Qual é o papel da Febraban e de que forma contribui para o crescimento e evolução do setor bancário e da economia em geral?
A Febraban tem um papel específico de representar setorialmente a indústria bancária brasileira. Isto significa organizar a agenda e os temas que integram a pauta do setor bancário. O sistema bancário tem como finalidade principal prover crédito e é, por isso, uma alavanca importante para a economia, para o desenvolvimento. A Febraban reúne 115 bancos, desde os mais pequenos aos maiores, dos mais variados nichos, bancos retalhistas, bancos de investimento, bancos nacionais e estrangeiros. Portanto há uma pluralidade grande de representação desses bancos. Dentro da federação existem 25 comités técnicos que são agregados por temas. Temos o comité de risco de crédito, de crédito para as pessoas, outro comité de crédito para as empresas e os comités voltados para a inovação bancária, para a tecnologia bancária e para a prevenção de fraudes cibernéticas. Tudo isso é discutido, para que se possa ter um sistema financeiro mais resistente, mais resiliente e mais moderno.
Como avalia o momento que se vive no setor financeiro no Brasil e de que forma a conjuntura internacional está a afetar a vida das instituições financeiras?
O setor bancário é um canal, uma alavanca para o fomento da economia e, por isso, sofre os choques externos e os choques internos, mas é uma grande oportunidade para o desenvolvimento do país. Ele é um veículo, um intermediário entre aqueles que poupam as suas economias e aqueles que precisam de recursos. Todas as vezes que temos problemas, sejam conjunturais ou estruturais, seja na economia internacional seja na economia doméstica, o setor bancário sofre os impactos dessa conjuntura. Neste momento temos um novo governo, que completa um ano, o terceiro mandato de presidente Lula da Silva.
Passamos uma conjuntura política basta adversa, com eleições muito polarizadas, e isso fez com que toda a população ficasse também contaminada com esse processo, mas temos uma democracia institucionalizada, uma democracia fortalecida e testada, e isso faz com que essa estabilidade seja importante para a economia. O Brasil neste momento está a procurar o seu equilíbrio fiscal orçamental, estamos com a inflação controlada, com uma queda consistente e gradual, a inflação caminha para que possamos alcançar as metas que são estabelecidas pelo Banco Central, tendo, de um lado, o equilibro orçamental e, do outro lado, a estabilidade monetária, com inflação controlada. Estas são duas âncoras para que o Brasil possa manter a sua capacidade de crescimento. Isto tem reflexos positivos no setor bancário, que está com elevados níveis de capital, de liquidez, de provisão, de rentabilidade, e está pronto para fazer parte da retoma económica no Brasil.

Na Europa, a subida das taxas de juro, a crise energética, a inflação estão a afetar perigosamente o consumo e a concessão de crédito, nomeadamente na habitação. De alguma forma este cenário se perspetiva no Brasil?
É muito difícil qualquer setor bancário no mundo não ser afetado pela conjuntura económica, seja doméstica ou internacional. Se dermos alguns passos atrás, vivemos até hoje a ressaca do que aconteceu na pandemia. O mundo inteiro precisou fazer uma injeção muito grande de recursos, governos fizeram injeções fiscais muito elevadas colocando liquidez nas economias. Também a Guerra Rússia/Ucrânia afetou de forma substancial as importações e as exportações, a produção de grãos, de gás, de combustíveis, tudo isso fez com que, saindo de uma desorganização económica fruto da pandemia, e vindo a guerra, quer da Ucrânia quer do médio Oriente, os níveis de inflação no mundo subissem bastante depois de uma queda muito pronunciada. Tivemos a necessidade de os bancos centrais no mundo inteiro subirem as taxas de juro para conter a inflação, e isso fez com que as economias caminhassem para alguma desaceleração económica.
O Brasil sofre os impactos e influxos dessa desarrumação económica global, com inflação alta e juros altos, com a economia a desacelerar. O país conseguiu mais cedo ver que a inflação ficaria mais alta e começou mais cedo a subir as taxas de juro para conter essa escalada. Chegou a ter uma das mais altas taxas de juro, e ainda tem, mas começamos há três ou quatro meses um processo de queda da taxa base da economia. O comité de política monetária no Brasil já fez três reduções e espera-se mais uma redução, pois está ainda muito elevada, mas deverá terminar o ano em 11,75% e o mercado aponta que termine, em 2024, nos 8 a 9% de juros. Isto é claramente uma taxa muito elevada, mas para os padrões brasileiros temos algo que se mostra mais animador do ponto de vista da economia.
Neste contexto os bancos estão alinhados. Estamos com uma capacidade bastante razoável de prover crédito. A carteira de crédito vai crescer anualmente algo como 7% a 8% contra um PIB de 3%, ou seja, é um crescimento forte no mercado de crédito brasileiro. Em 2022 tínhamos crescido 14%. Eu sei que é metade do crescimento, mas é uma acomodação do processo natural que aconteceria com uma desaceleração, tendo em conta que estávamos com juros altíssimos e uma das finalidades da política monetária é conter o mercado de crédito. Crescer 7% a 8% já é um patamar muito elevado.
Quais as principais ameaças e desafios que o setor enfrenta? Como recuperaram da fase pandémica?
Existe uma ameaça e uma oportunidade, que é a transição digital que a indústria bancária atravessa. Uma oportunidade porque quanto mais digitalizados forem os produtos financeiros maior a sua capacidade de alavancar, de oferta e de baratear. Por outro lado, o mundo digital traz os seus riscos como ameaças e ataques cibernéticos, e isso é um potencial para atingir a integridade e a proteção dos dados bancários. Por isso se, por um lado, é uma oportunidade, por outro lado é um desafio.
Outro desafio é a necessidade que temos de fazer o setor ser uma alavanca para o crescimento e aí precisamos tomar cuidado com intervenções de governos, na política de crédito, com intervenção nas taxas de juro. Isto é um desafio muito grande porque há um voluntarismo por parte de alguns governos que entendem que intervindo no crédito vão conseguir ampliar a oferta de crédito, o que é ao contrário. Quando mais intervenção tivermos fora da regulação normal, mais a oferta de crédito se pode reduzir. Vemos o governo federal com alguma propensão para intervenções. Também precisamos tornar o custo do crédito mais barato no Brasil. Temos um nível de inadimplência (crédito malparado) muito elevado, temos custos administrativos muito elevados, e temos uma carga fiscal muito pesada no crédito.
De que forma é que se pode atuar nestes desafios?
Em relação à inadimplência, um dos caminhos é ampliar e melhorar o mercado de garantias. O mercado de crédito é tanto mais eficiente quanto maior for a capacidade de recuperação de créditos, quanto maior for a garantia dada ou quanto mais eficaz for a garantia e quanto mais eficiente for a retoma. No Brasil, a cada 100 reais de spread bancário (cerca de 20 euros), temos 40% de custo da inadimplência, o que significa que esta tem um peso muito grande no crédito. Precisamos ter um arcaboiço legal que permita dar aos bancos uma maior capacidade de recuperação de garantias. A cada dólar dado em garantia para os bancos, estes só conseguem recuperar 20 centavos de dólar. Quando falamos do financiamento automóvel, a cada 100 contratos não pagos, os bancos só conseguem recuperar 20 automóveis.
Quando as empresas entram em recuperação judicial, também a recuperação de garantias é muito pequena, em redor dos 15%. No Brasil temos muita dificuldade para recuperar garantias, mesmo que haja garantias. A justiça no Brasil, além de morosa e paternalista, acaba por entender que pode proteger o consumidor quando na verdade prejudica o consumidor. Quando os bancos tentam recuperar uma casa ou um carro e não conseguem, significa que não foi possível monetizar aquela dívida e, portanto, a dívida vai gerar custos de créditos que são repassados para os juros bancários. Existem garantias, mas são pouco recuperadas, ou seja, existe pouca efetividade no processo de recuperação do crédito e isso faz o crédito ficar caro. Se conseguíssemos avançar com uma legislação, com normas que garantam aos bancos efetividade para recuperar crédito malparado, isso seria um grande avanço para diminuir o custo de crédito. Diria que hoje é o grande desafio que temos no crédito.

A sustentabilidade é também um dos desafios que a banca enfrenta. Que medidas estão os bancos brasileiros a tomar nesse sentido?
A agenda da sustentabilidade, das finanças sustentáveis, não há forma como separar da atuação da banca. No Brasil algo como 25% do total do crédito concedido para as empresas é destinado a financiamento de empreendimentos sustentáveis. Outra iniciativa que tomamos na Febraban é uma autorregulação da cadeia de carne: os bancos são obrigados a analisar a cadeia de carne para que não possam emprestar dinheiro, por exemplo, a empresas que compram e vendem carne se essas empresas comprarem de fornecedores que criem gado em áreas de desmatamento ilegal. É preciso que haja todo um rastreamento para que os bancos se certifiquem que não libertam recursos para empresas que vendem gado que é criado em área de desmatamento ilegal. Também estamos a avançar para criar uma taxonomia verde para que possamos ter condições de saber quais os destinatários daquele crédito para que sejam todos voltados paras as finanças sustentáveis.
O avanço tecnológico tem sido importante no setor financeiro. De que forma é que a banca tradicional está a conviver com as fintech?
Também aqui vemos mais oportunidades do que desafios. Existe uma narrativa de que as fintech são uma ameaça à indústria bancária tradicional. Estou há 33 anos na banca e não consigo perceber como os bancos pequenos, médios e grandes vão desaparecer. O que acho é que há um espaço para tudo e para todos. Precisamos ter uma regulação bancária que possa fomentar a competitividade, que possa permitir regras até mais flexíveis para os novos players, ou seja a indústria precisa ser aberta para que possa atrair novos atores.
O cuidado que temos de ter é quando se tem novos entrantes que têm uma atuação que oferece risco sistémico, aí sim precisamos de uma regulação rigorosa que os alcance. Essa é a observação que faço, pois não há qualquer problema de convivência no Brasil entre as fintech e os bancos. Temos uma atuação complementar, pois as fintech tem um papel muito importante de inclusão financeira, de “bancarização”, e isso acaba por tornar o sistema financeiro mais competitivo e mais eficiente. Porém, é preciso que haja uma regulação que de uma oportunidade para os novos entrantes ingressarem, mas também para que possa alcançar as instituições novas que oferecem risco. Não podemos aceitar que uma regulação seja tão flexível que levante ameaças ao sistema financeiro.
Disse na masterclass que havia 11 milhões de pessoas que não tinham qualquer relação com o sistema bancário até à introdução do PIX, sistema idêntico ao nosso MBWay… Que mudança estrutural foi essa?
Eram cerca de 11 milhões de pessoas que estavam à margem do sistema e que se deram conta que por meio do PIX podiam receber recursos. O PIX é uma ferramenta que permite transferências instantâneas e pagamentos eletrónicos e tem uma capacidade de inclusão financeira muito grande. Deparamo-nos com brasileiros muito pobres, que fazem vendas na rua, de doces, de chocolates, de pipocas, ou seja, trabalhadores informais que tiveram de abrir uma conta para receber PIX. Esta é uma ferramenta extraordinária: temos 150 milhões de transações PIX por dia, sejam transferências ou pagamentos instantâneos. São mais de 130 milhões de brasileiros que utilizam, cerca de 12 milhões de empresas, e fazem mais de 4 mil milhões de transações por mês. Tudo isto representa um volume financeiro de 1,2 biliões de reais. As transações médias são de 50 euros, mas já tivemos transações milionárias, como uma de 200 milhões de euros.
Face a esta evolução tecnológica, como lida o sistema financeiro com a cibersegurança e com as fraudes bancárias?
O que aconteceu no Brasil foram transformações incríveis na indústria bancária o que levou à quase totalidade da digitalização dos serviços e dos produtos financeiros, o que significa que tivemos uma explosão dos canais digitais, a ponto de que cada 10 operações, 8 são por meios digitais, ou seja 80% das operações são feitas em canais digitais, sobretudo no mobile banking e internet banking. O Brasil foi pioneiro na criação de websites para operações bancárias e também na criação de aplicações para mobile banking. Tudo isso levou a que entrassem em cena os crimes cibernéticos, os ataques digitais.
Críamos um laboratório de segurança cibernética voltado exclusivamente para a indústria bancária, que tem vários pilares de atuação. Um deles é a capacidade de formação dos colaboradores para que os bancos possam ter mão de obra especializada e voltada para a segurança digital, para manter a integridade dos dados bancários dos clientes. Ou seja, é para manter a credibilidade da indústria bancária, e isto passa por um robusto sistema de cibersegurança. O Brasil tem investido algo como 10 mil milhões de euros por ano em tecnologia e inovação, e cerca de 2 mil milhões de euros em cibersegurança.
Em que fase é que está a criação da moeda digital brasileira, a Drex?
A moeda digital é algo ainda bastante insipiente nos bancos centrais, ainda poucos criaram a sua moeda digital, mas existe a perceção que ter moedas digitais é aumentar o potencial de finanças inteligentes. Temos aí o mundo cibernético, a inteligência artificial, as plataformas blockchain e tudo isso sendo bem usado são ferramentas para que possamos ter um mercado de contratos financeiros inteligentes, com tokenização de ativos. A moeda digital é emitida pelo próprio banco central, embora representada digitalmente. Como se pudéssemos pegar na quantidade de recursos depositados nos bancos e converter os depósitos de moeda normal em moeda digital. Fazendo essa conversão, emitida pelo banco central e assim controlada.
Sendo que essa é a diferença fundamental da cripotomoeda… Esta é uma reação a essas moedas digitais?
Exacto, essa é a grande diferença. Na criptomoeda não se tem uma regulação e nem uma emissão do banco central. E sim, pode ser uma reação da banca para que possa existir um modelo digital, mas que tenha lastro e tenha as características de uma moeda, ou seja, aquela que é emitida pelas entidades monetárias do país, no nosso caso, do Banco Central brasileiro. O Brasil está na linha da frente desta criação de moeda e a Febraban faz parte desta criação, temos um acordo de cooperação técnica com o banco central e a expectativa é que nos próximos dois anos tenhamos a implantação da moeda digital brasileira.