Há algum tempo, durante uma entrevista, Alexia Putellas, vencedora de duas Bolas de Ouro, disse: “Haverá pessoas que não o sentem assim, mas para mim é arte. Que 11 jogadoras, cada uma com o seu papel e as suas características, façam o que têm de fazer a cada segundo e se ponham de acordo sem comunicarem, para mim é arte.”
Talvez quem, ainda meio ensonado, assistiu ao jogo do play-off intercontinental, o mesmo que Tatiana Pinto descreve como “impróprio para cardíacos”, não consiga ver arte entre o caos, o susto e o pico de emoção e alegria. Outros defenderão que essa mistura de emoções é a definição exata de uma arte made in Portugal, recorrendo ao clássico ‘sofrer até ao final’. Mas para entender esta arte, aquela que se tornou a fórmula perfeita para alcançar o resultado mais desejado, é preciso recorrer a outro conceito: o tempo.
Ana Borges, jogadora do Sporting, tem 184 internacionalizações por Portugal. Terminado o jogo em que a seleção feminina garantiu pela primeira vez a presença num Mundial, lembrou todas as gerações que fizeram parte da caminhada até àquele momento.
“Se atingimos este feito, foi porque elas não deixaram morrer o futebol feminino. As jogadoras antes não recebiam um único cêntimo para jogar futebol, e ainda assim nunca desistiram, nunca deixaram de lutar. Eu digo sempre que a minha maior referência é a jogadora portuguesa, porque não receber nada, jogar só mesmo pelo amor ao futebol, é uma mais-valia. Foram elas que seguraram o futebol feminino, foram elas que nos abriram estas portas, e agora nós continuamos a abrir cada vez mais portas para a nova geração”, diz à Forbes.
Outra das jogadoras que está há mais anos na equipa é Dolores Silva, que, recordando a realidade que encontrou a nível de seleção em 2009, lembra as dificuldades iniciais. “A verdade é que íamos para os jogos com medo de defrontar outras seleções que tinham realidades diferentes, devido às ligas delas e à profissionalização que tinham nos clubes”, conta a jogadora do SC Braga à Forbes.

Avançando até 2023, o cenário é o seguinte: a seleção que vai este ano ao Mundial já marcou presença em duas fases finais de Europeus, começou a bater recordes de audiência e não vira a cara à luta seja contra que equipa for.
Como é que isto aconteceu? “Foi um processo. Se o futebol feminino chegou aonde chegou, vem de muita gente atrás. Os presidentes da Federação (FPF)… Já mudou o presidente, e o anterior também acreditava no futebol feminino, aliás, ele fez com que existisse a primeira seleção nacional. Passaram por lá treinadores, todos eles tiveram a sua importância. Claro está que foi com o professor Francisco Neto que sentimos que praticámos melhor futebol. Foram muitas jogadoras a passar, a contribuir, muita gente do staff e envolvida à volta que fez tudo isto acontecer”, afirma Ana.
O tempo, aliado a uma enorme dose de trabalho e dedicação, com um toque de experiência de muitas pessoas pelo caminho. Porque nenhuma peça de arte é arte logo ao início, mas o final foi incrível.
Passo a passo
Enquanto a nível de seleção Portugal vive o melhor momento da sua história, as jogadoras, apesar de terem contratos profissionais no país, continuam a jogar uma liga que não é profissional. Ao todo, segundo dados do Sindicato dos Jogadores, entre 389 atletas, 195 são amadoras, 181 são profissionais, e 13 têm um contrato de formação. As diferenças são claras. A Liga BPI tem um conjunto de equipas onde o investimento é maior e as jogadoras têm acesso a boas condições, e um segundo grupo onde os meios têm demorado mais tempo a chegar.
“Nós ainda estamos aquém de termos um campeonato profissional. Antes de podermos ser todas profissionais, têm de ser dadas condições para a prática da modalidade, e sabemos que nem todos os clubes têm acesso às condições que por exemplo o Benfica tem. Continua a haver equipas que dividem campo com os rapazes ou têm de esperar que eles treinem para depois treinarem elas. Continua a haver equipas que só podem treinar às 21h, jogadoras que têm de sair dos trabalhos às tantas da noite para depois irem treinar. Há jogadoras que ainda se equipam em contentores”, conta Jéssica Silva à Forbes, realçando que “a primeira fase é conseguirem fornecer ou dar recursos mínimos às atletas para que possam jogar futebol em condições e depois, sim, profissionalizar o campeonato”.

Jéssica é uma das jogadoras que fazem parte de um projeto com poucos anos mas várias conquistas: a equipa do Benfica. As tricampeãs nacionais provam através dos resultados o que é possível com ambição e investimento.
“Sem dúvida alguma que o Benfica em poucos anos poderá estar entre as 10 melhores equipas da Europa. Claramente temos o melhor plantel, mas quando há maior investimento, quando há maiores recursos financeiros, quando há pessoas a pensarem da mesma forma, naturalmente as coisas acabam por acontecer, e os resultados de que falávamos traduzem esse investimento e essa aposta”, diz a jogadora.
Fátima Pinto e Tatiana Pinto jogaram a última época numa liga profissional: a Liga F, em Espanha. Muda assim tanta coisa depois da profissionalização? Por um lado, sim, por outro, não.
A competitividade é grande, os apoios são maiores, incluindo o apoio às infraestruturas, que consequentemente são melhores, as televisões entram em cena, e a visibilidade torna-se muito maior. Mais visibilidade significa, também, mais adeptos nos estádios e maiores receitas através da bilheteira. Ao mesmo tempo, as diferenças no que à capacidade financeira dos clubes diz respeito não muda.
“Eu estou numa equipa que não pode ser comparada aos grandes, mas vou falar da minha realidade. Na equipa onde estou agora, as condições de trabalho são muito semelhantes às que eu tinha no Santa Teresa há oito anos”, conta Fátima Pinto à Forbes, referindo-se ao Alavés.
O que foi uma conquista geral foi um acordo no que à base salarial diz respeito. Em Espanha todas as jogadoras recebem pelo menos 16 mil euros anuais. Em Portugal, de acordo com o Sindicato dos Jogadores, os salários das atletas que têm um contrato profissional começam naquele que é o valor mínimo mensal no país (740 euros), sendo que a jogadora mais bem paga da liga recebe cerca de 8 mil euros mensais.
Sendo assim, quando o tema é profissionalização, é essencial que se reúnam primeiro as condições para que todos os clubes a possam acompanhar.

“Nós não podemos exigir das equipas que até agora mantiveram o futebol feminino, porque não foi o Sporting, o Benfica, o SC Braga ou o Famalicão, foi um Albergaria, um Vilaverdense, um Ouriense. Se o futebol feminino hoje existe, foi porque elas nunca desistiram, e também acho que não podemos deixá-las de parte. Se um dia essas equipas acabarem, não vai ser só um campeonato de quatro”, realça Ana Borges.
De cá para lá
As cinco jogadoras com quem a Forbes falou conhecem bem outras realidades, uma vez que em algum momento optaram por uma carreira noutros campeonatos. E que campeonatos. Jéssica Silva e Ana Borges já passaram, por exemplo, pelas ligas inglesa e norte-americana. Falamos dos países campeões da Europa e do mundo, respetivamente. Dolores Silva passou pela Alemanha, onde jogou com Alexandra Popp, que no início deste mês estava a jogar a final da Liga dos Campeões contra o Barcelona, o clube que se sagrou campeão da Europa e que Tatiana Pinto e Fátima Pinto defrontaram ao longo da época.
“Posso dizer que me acrescentou muito enquanto atleta. Estar entre as melhores, jogar e treinar com as melhores, isso fez de mim melhor, fez-me crescer enquanto jogadora”, garante Jéssica Silva.
Foram para fora em momentos diferentes da carreira – Ana e Dolores só num clube estrangeiro assinaram o primeiro contrato profissional – mas todas com a mesma coisa em mente: a competitividade.
“Aquilo que procurei quando saí de Portugal foi competitividade. Saber que todos os fins de semana iriam ser um desafio muito grande. Isso obriga-te a saíres da tua zona de conforto e a cresceres, porque só na dificuldade é que se consegue crescer”, diz Tatiana.

Olhando para a classificação deste ano na Liga BPI, é fácil perceber as diferenças entre os clubes portugueses. Nos 22 jogos que o Benfica fez, registou 21 vitórias e apenas uma derrota. O resultado levou a equipa à conquista do campeonato com uma vantagem de 9 pontos sobre o Sporting, 2.º classificado. A equipa que desceu (Amora FC) terminou com 7 pontos. Ou seja, não foi necessário esperar até ao final do campeonato para se saber que o resultado seria este. “Eu, por exemplo, neste momento estou em último. Vamos ter a última jornada da liga, e ainda não sabemos qual das equipas vai descer. Isto é competitivo até à última. Isso em Portugal não acontece, temos uma equipa que tem a despromoção já há muito tempo. Seria importante melhorar isso em Portugal, conseguir mais competitividade para o campeonato”, defende Fátima.
Estas são cinco de um grupo de vários nomes que arriscam uma carreira lá fora, mas, mesmo conhecendo várias jogadoras, e olhando aos resultados, o mundo do desporto não olha para a jogadora portuguesa de igual para igual.
“É bastante desvalorizada. Tenho o exemplo aqui em Espanha, há clubes que preferem uma jogadora porque tem ou já teve nome em Espanha a uma portuguesa com provas dadas. Acho que ainda há discriminação em relação à jogadora portuguesa”, considera Fátima, recordando uma conversa recente: “No outro dia conversava com uma amiga que me dizia: ‘Vocês teriam de ganhar o Mundial para vos olharem com outros olhos.’ É uma frase muito dura, e acho que é muito real. Ainda temos um longo caminho pela frente e, se queremos conquistar o respeito de outros países, temos de continuar o nosso trabalho, o nosso caminho e provar o nosso valor.”

E determinação não lhes falta, até porque esta pressão que lhes colocam em cima de ser quase que uma obrigação estarem constantemente a provar o que valem só lhes alimenta a exigência que têm com o seu próprio trabalho.
Definição de igualdade
Quando se fala em igualdade no futebol, a primeira coisa em que a maioria pensa é em salários. Consequentemente, há sempre alguém que chute um “primeiro elas têm de conseguir as vendas que os homens conseguem”, quem opte por adicionar um “quando elas encherem estádios” e até quem tente um “o futebol não é para mulheres”. Mas porque nisto da igualdade elas estão muitos passos à frente de quem pensa desta forma, o futebol, este futebol, tem a clara noção daquilo que quer alcançar.
“As jogadoras nunca pedem igualdade salarial, o que as jogadoras pedem é o mínimo, é o básico: é ter as mesmas condições ou o mesmo acesso que o futebol masculino tem, seja a nível de departamentos médicos, de campos, roupa, material, oportunidades, seja o que for. Isso, sim, é a nossa grande luta. As mulheres e as meninas têm de ter as mesmas condições de acesso à prática do futebol ou de outra modalidade que os meninos e os homens têm”, afirma Tatiana.
E quem acha que isso acontece em qualquer clube do mundo está muito enganado. Mesmo que as condições existam, a acessibilidade nem sempre é igual para ambos os géneros. Em ligas profissionais ou não. Em Espanha, por exemplo, jogadoras como Fátima e Tatiana chegam a estar entre 7 e 10 horas num autocarro para irem para um jogo, uma viagem que por si só já contribui para o desgaste físico. Ou as dificuldades no acesso às próprias instalações do clube: “O que me entristece ainda hoje é não ter acesso a um ginásio porque está lá a equipa masculina. Isto é uma realidade no futebol feminino, acontece em todo o lado, mesmo em ligas que já estão mais avançadas. Para mim é surreal. Como é que nos querem comparar, se nós nem temos as mesmas condições que eles têm?”, questiona Fátima.
Estas cinco jogadoras vão participar num Mundial muito marcado pelo conflito de várias jogadoras com as próprias federações, todas elas em busca de melhores condições. Em Portugal, o ambiente entre equipa e Federação não poderia ser mais positivo. “Nós não somos pagas de igual maneira, mas se calhar não é isso que nós pretendemos no imediato, acho que a gratidão tem de estar presente. Também acho que, sempre que queremos, somos ouvidas e sentimos respeito”, diz Dolores sobre a relação com a FPF.

Quanto ao resto?
“Podemos usufruir das mesmas condições que a seleção A masculina usufrui: o campo de treinos, a casa dos atletas, temos o nosso espaço, o nosso seio familiar, como costumamos dizer. Claro que isso tudo é completamente diferente do que há uns anos, e tem sido muito importante que a Federação nos olhe de igual modo”, afirma Ana.
Até porque cada equipa, com o seu percurso, faz exatamente a mesma coisa. Quer seja a equipa feminina ou a masculina, são os dois grupos que representam Portugal no futebol ao mais alto nível. Para que seja mais fácil distinguir de que equipa se está a falar, chama-se futebol feminino ao futebol jogado por mulheres, mas a verdade é que esse futebol não existe. É apenas futebol, o mesmo em qualquer campo.
Ao final do dia, é isso que as jogadoras querem que as pessoas entendam sobre a profissão.
“Eu gostava que as pessoas parassem de comparar o futebol feminino com o masculino. Acho que primeiro é futebol, ponto. Agora as pessoas têm de perceber que são géneros diferentes, o corpo de uma mulher nunca é nem nunca vai ser igual ao corpo de um homem. É futebol jogado por mulheres, mas é um futebol igualmente atrativo, rápido, físico, técnico, igualmente bom taticamente e rico. As pessoas têm de parar de fazer comparações, estão a comparar o incomparável. Somos mulheres, temos características diferentes, o nosso físico é diferente, e as pessoas têm de aceitar isto”, conclui Tatiana.
x1,5 De forma a regularizar a situação das jogadoras, o Sindicato dos Jogadores propõe um acordo coletivo de trabalho (ACT). “Nós gostaríamos que obviamente houvesse um salário igual ao dos homens, mas aceitamos que não seja ainda possível. Queremos que seja o mais aproximado possível. Por outro lado, ver questões como a maternidade, o assédio no desporto, o contrato-tipo, os quadros competitivos”, diz Joaquim Evangelista à Forbes. O objetivo passa por aumentar o valor-base para o salário mínimo nacional (740 euros) multiplicado por 1,5, o mesmo que recebem os homens na Liga 3. Desta forma as duas ligas mais elevadas geridas pela Federação estariam em pé de igualdade.