“Há 50 anos, não teria sido possível ser eleita”

Nunca teve a ambição de ser advogada, e acaba por chegar ao direito um pouco por acaso. Aos 53 anos, Fernanda de Almeida Pinheiro, recém-eleita bastonária da Ordem dos Advogados, apenas a terceira mulher desde o seu início, admite que almejar com um curso superior não era algo normal numa família muito modesta, como era…
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Fernanda de Almeida Pinheiro acredita que só chegou a bastonária da Ordem dos Advogados porque o país evoluiu. Por ter nascido menina e numa família humilde, há cinco décadas isso seria impensável
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Nunca teve a ambição de ser advogada, e acaba por chegar ao direito um pouco por acaso. Aos 53 anos, Fernanda de Almeida Pinheiro, recém-eleita bastonária da Ordem dos Advogados, apenas a terceira mulher desde o seu início, admite que almejar com um curso superior não era algo normal numa família muito modesta, como era a sua. Nascida em Caldas da Rainha, filha de uma cozinheira e de um mecânico de automóveis, educada na escola pública, cedo percebeu que, por ser pobre, nem tudo lhe era permitido. A mãe, afastada da escola por ser menina e que viria a frequentar mais tarde, tinha um desejo para as filhas: que fossem educadoras de infância. Apesar de gostar de crianças sabia que não era esse o seu caminho. 

“Tive uma infância muito feliz, muito cuidada, muito amada, mas foi também uma infância que sempre me fez perceber que enquanto menina e filha de pessoas humildes não podia aspirar a muita coisa”, refere. No entanto, apesar de recordar as insuficiências, como a de não poder comprar roupa igual às das outras meninas, nunca se conformou com o destino que parecia estar traçado. “Nunca fui uma pessoa acomodada, sempre fui muito refilona e sempre questionei o status quo. Todos nós temos o dever e a obrigação de lutar pelos nossos direitos, pelos dos outros e de corrigir o que está mal,” afirma. Acredita que ser eleita para a Ordem dos Advogados nunca poderia ter acontecido há décadas, porém a sociedade evoluiu e já se ultrapassaram algumas barreiras. “Tenho a certeza que há 50 anos, o que aconteceu agora era absolutamente impossível de acontecer, não só pelas características do país como mesmo da profissão que escolhi, por ser de origem humilde, por ter estudado na escola pública, por ter sido trabalhadora-estudante, sem quaisquer pergaminhos anteriores na profissão e por exercer em prática individual”, diz. Ao longo do seu percurso muitas foram as pessoas que não acreditaram na eleição da sua lista, porque, conforme explica, “somos todos advogados em prática individual, pessoas sem grande poder económico, não temos nenhum peso político”. Tinham do seu lado a vontade de trabalhar em prol da classe, de resolver problemas que se arrastam há anos, embora Fernanda de Almeida Pinheiro admita que “isso raramente é suficiente, mas os colegas reconheceram em nós o mérito do trabalho de luta pela classe e pelos direitos da classe que permitiram que a eleição acontecesse”.

Trabalho árduo

Quando, aos 18 anos, acabou o 12º ano sabia que os pais não tinham posses para lhe custear um curso superior. Mas isso não a demoveu desse sonho. Começou a trabalhar em Óbidos numa unidade hoteleira, e mais tarde resolve ir para Lisboa, onde arranja emprego como secretária de administração numa empresa. A ideia passava por encontrar uma forma de trabalhar e estudar em simultâneo. Anos mais tarde, a sua irmã entrara em Direito, e influenciada por ela e por alguns amigos, percebeu que era esse o seu caminho. Matriculou-se em 1994, e manteve o estatuto de trabalhador-estudante durante alguns anos. Mudou de emprego, entrou num grupo económico que lhe deu algumas oportunidades de crescimento profissional, passando a fazer processamento de salários. Daí passou a chefiar o departamento de Recursos Humanos de uma das empresas do grupo. Saiu dessa empresa em 2007, tendo começado a dar formação e a exercer advocacia a tempo inteiro em prática individual, na comarca de Lisboa. Surgiu então a hipótese de se candidatar à Ordem dos Advogados, e com o apoio incondicional da família e dos amigos, o seu grande suporte, achou que estava na hora de iniciar uma nova aventura.

Acredita na meritocracia apesar de ela ainda ser pouco visível. “As pessoas gostam muito de falar numa cultura de meritocracia, mas ela não existe, o que existe é o conjunto de circunstâncias que te permite algumas vezes quebrar o habitual”, refere. Defende que as crianças não têm todas as mesmas oportunidades e que nós, enquanto sociedade, pouco fazemos para garantir que isso aconteça. “As coisas estão melhores, não têm comparação com o que era há umas décadas, mas a minha infância foi marcada por saber que existiam limitações à minha evolução, e as crianças não podem crescer a pensar que o mundo é limitado”, defende. Acredita que uma sociedade que não seja igualitária dificilmente pode ser uma democracia sã, e “temos a obrigação de abrir caminho para que as pessoas que vêm a seguir a nós consigam ter acesso a um mundo cada vez mais justo, igualitário e equilibrado”.

Igualdade de oportunidades

A sua visão para o mundo é clara e compatível com a profissão que escolheu e em que acredita. “A nossa obrigação enquanto seres humanos é conseguirmos, de uma forma consistente, que todos, independentemente do local onde nascemos, independentemente do género, e independente do estrato social em que crescemos, tenhamos as mesmas oportunidades e consigamos almejar a ter uma vida digna, segura, ter acesso à educação, acesso à habitação, acesso à saúde, acesso à justiça, e ao bem-estar social”, afirma.  A sua ambição é trazer isto tudo para a advocacia, atividade que diz estar a ser cada vez mais desrespeitada. “Não existe nenhuma profissão no país, para além dos advogados, solicitadores e dos agentes de execução, que esteja mais debilitada e mais privada de direitos de previdência social. Uma pessoa que não tem direitos sociais nem de previdência não pode exercer a profissão de forma livre, independente e autónoma, porque está refém de um conjunto de circunstâncias que não consegue controlar por razões de insuficiência”, explica. Para ela não é admissível que uma mulher advogada tenha de ser forçada a praticar diligências judiciais dias depois do parto porque o tribunal se recusa, apesar da lei o consignar como obrigatório, a adiar uma diligência dizendo que a profissional deve subestabelecer. Cerca de 85% dos profissionais estão em prática individual e entregar os seus processos a outros colegas traz custos para o cliente e para o profissional.

Apreciadora de orquídeas, tem na leitura um dos seus principais prazeres, embora o tempo seja escasso. Gabriel Garcia Marques, Jorge Amado e José Rodrigues dos Santos são alguns dos autores que gosta de acompanhar, sendo que a Filha do Capitão, deste último autor, é uma das suas obras favoritas. Também muito ligada ao seu lado espiritual, interessa-se por tudo o que tenha a ver com PNL – Programação Neurolinguística e de seguir autores como Eckhart Tolle, que escreveu o Poder do Agora, entre outros. Teatro, bailado e ópera são outras das atividades que aprecia assistir nos tempos de lazer. Gostava de fazer duas viagens de sonho e acredita que serão para breve: ir a Petra e à Terra Santa. Voluntariado é outra das suas causas: está ligada à Acreditar, onde faz parte de um grupo de contadores de histórias a crianças no IPO e à comunidade Vida e Paz.

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