Joana Andrade: “O mar da Nazaré é onde eu desafio os meus limites, onde saio da minha zona de conforto e exploro os meus medos”

O TUDOR Nazaré Big Wave Challenge tinha uma vaga por preencher desde o início deste ano, depois de Maya Gabeira, que fazia dupla com o surfista português António Laureano, ter anunciado o fim da sua carreira. A World Surf League (WSL) acabou por atribuir esse lugar à britânica Laura Crane, o que deixou novamente de…
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Joana Andrade ficou fora das escolhas da WSL para o Nazaré Big Wave Challenge, mas continua focada na modalidade e numa série de projetos que surgiram a partir do surf. É a primeira e única mulher portuguesa a desafiar as ondas da Praia do Norte.
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O TUDOR Nazaré Big Wave Challenge tinha uma vaga por preencher desde o início deste ano, depois de Maya Gabeira, que fazia dupla com o surfista português António Laureano, ter anunciado o fim da sua carreira. A World Surf League (WSL) acabou por atribuir esse lugar à britânica Laura Crane, o que deixou novamente de fora do campeonato Joana Andrade, a primeira e única portuguesa a surfar as ondas grandes da Nazaré.

A notícia foi recebida com surpresa por vários, que esperavam contar com mais um nome nacional no line-up, e pela própria, que emitiu um comunicado onde lamentou a “falta de respeito e reconhecimento pelo talento nacional” por parte da organização da prova. Até porque é comum a WSL atribuir um wildcard a surfistas naturais do país que recebe as competições, como está a acontecer, por exemplo, em Peniche. Para o MEO Rip Curl Pro Portugal, Frederico Morais e Yolanda Hopkins receberam um wildcard para o evento.

“Eu sempre estive apta, estive lá todos os anos”, diz à Forbes. “Não percebo os critérios e acredito que há muitos jogos de interesse. Fiquei triste por não ser convidada, acho que este ano foi a gota final e quis dizer ao público a minha insatisfação. Hoje em dia, sinceramente, não sei o porquê. Houve um comunicado a dizer que eu não estava preparada e eu acho isso uma anedota. Magoou ver um percurso de tantos anos ali e depois ser substituída por uma pessoa que esteve lá cerca de um ano. É triste não terem convidado uma portuguesa”.

Foto: Lili Zwirner

A Forbes contactou também a WSL para perceber quais são os critérios em que se baseiam para a escolha dos atletas convidados para o Nazaré Big Wave Challenge. Rob Gunning, Europe tour manager da liga, respondeu: “O processo de seleção tem em conta vários fatores que englobam a perícia, a segurança e o desempenho. Por exemplo, além das capacidades de surf de ondas grandes, também consideramos a experiência de condução de jet-skis neste ambiente específico. Estamos entusiasmados por testemunhar o desenvolvimento contínuo das equipas de tow-in e dos surfistas de ondas grandes na Nazaré”.

O que é inegável no meio de toda esta situação é o percurso que a atleta fez até hoje, que a levou a um lugar na lista das 40 mulheres mais influentes do desporto em Portugal. Para os mais distraídos, conheça a carreira da única mulher portuguesa a desafiar as ondas da Nazaré.

Como é que surgiu o teu interesse pelo surf?
Começou desde muito pequenina, lembro-me que era onde me conectava comigo. Era uma pessoa muito irrequieta, sofro de dislexia, sofria de algum bullying na escola, então os meus pais tentaram meter-me em todos os desportos possíveis e imaginários, para ver se eu ficava mais calma, mais focada. Experimentei todos, era boa, e a verdade é que o surf era o único desporto que eles diziam para não ir, porque naquela altura era impossível prever uma carreira de surfista. Mas era onde me sentia em paz e em harmonia comigo mesma. Comecei a surfar, demorei quase três meses a meter-me em pé, e lembro-me que quando consegui, pensei ‘uau, é isto que eu quero mesmo fazer para o resto da minha vida’.

Naquela altura não havia muitas mulheres, contávamos para aí com cinco mulheres portuguesas a surfar. Comecei a entrar em campeonatos, fui vice-campeã, campeã nacional de esperanças, quarto lugar na Europa. Fiz uma carreira dedicada ao surf, mas nunca tive muita aptidão para as competições, eu só ganhava a competição quando o mar estava grande. Sempre tive uma grande aptidão para as ondas grandes. Lembro-me quando o Garrett foi surfar a onda da Nazaré, eu fui lá, olhei para aquilo e pensei ‘isto é de loucos’, mas houve sempre uma voz cá dentro que dizia: Se tu gostas de te desafiar, se gostas de novos desafios, porque não começares a surfar ondas grandes. E assim foi. Claro que não fui logo para a Nazaré, estive a treinar durante um ano ou dois, a sair da minha zona de conforto, a puxar mais pelos meus limites, a treinar muito físico, mental, espiritual, para quando chegasse esse dia, estivesse pronta. Há seis anos, iniciei-me numa onda na Nazaré que ficou registada para o resto da minha vida e desde então pensei ‘é isto mesmo que eu quero’. Enquanto o surf normal é o meu santuário, é a minha igreja, é onde eu me sinto em conexão, o mar da Nazaré é onde eu desafio os meus limites, é onde eu saio da minha zona de conforto e exploro os meus medos.

Lembras-te dessa primeira vez na Nazaré? Como foi?
Lembro-me perfeitamente, estava o Hugo Vau, o Garrett. Telefonei ao Garrett a explicar quem é que eu era e a dizer que queria surfar uma onda grande na Nazaré. Ele automaticamente disse: é já amanhã. E eu aí duvidei de tudo, pus em causa tudo, sabes quando começa aquela voz, a outra voz que nós temos cá dentro, a dizer: não, diz que estás doente, diz que não podes. Mas pensei no quanto queria aquilo. Nesse dia nem dormi, muito nervosa, cheguei à praia a tremer. Quando entrei dentro de água fui surpreendida por uma paz interior tão grande e por um medo, mas ao mesmo tempo ao ter deslizado aquela montanha de água senti uma liberdade e uma profunda conexão comigo e com o mar.

Como mencionaste, tens de treinar a nível físico, mental, emocional. O que é que é mais importante no surf de ondas grandes?
Acho que têm de estar todos alinhados, mas a parte fundamental é a parte psicológica, mental, espiritual. Porque num momento de aflição, num momento de perigo, nós temos que ir buscar forças interiores, temos que usar as ferramentas todas que adquirimos e é muito o psicológico que joga, porque a verdade é que nós não podemos lutar contra a natureza, nós temos que nos render e temos que confiar que conseguimos sair daquela situação de perigo. É claro que a preparação física nos ajuda a manter aquela segurança, mas a parte mental é aquela que nos vai salvar.

Foto: Lili Zwirner

O que é que te faz lá ir?
É o desconhecido, é o perigo. Eu gosto de desafiar o perigo porque ao desafiar o perigo estou a conhecer-me a mim própria, estou a conhecer os meus medos, sair da minha zona de conforto. Acho que hoje em dia eu abraço o medo, o medo é meu amigo, é meu aliado. Enquanto antes fugia, agora vou eu em busca dele e isso ajudou-me com ferramentas para o meu dia-a-dia, como empresária, como surfista e como pessoa.

Consegues descrever a sensação de descer uma onda grande?
É uma sensação única, só estando lá é que dá para perceber. É uma sensação de liberdade, de união, de conexão, de entrar em outra dimensão, estás presente, estás consciente, estás focado e é uma sensação de liberdade e de conquista. É muito difícil explicar essa sensação.

O facto de seres a primeira, e até agora a única, mulher portuguesa a surfar as ondas grandes da Praia do Norte traz uma pressão maior?
Eu acho que não. Aliás, eu nunca pensei nesse lado, mas é claro que é bom ser a primeira. Fui a pioneira, abri portas para muitas mulheres, não só portuguesas, mas internacionais. Hoje em dia já temos muitas mulheres de fora na Nazaré. Acho que fui ali uma porta muito grande para o empoderamento feminino.

O que é que significa para ti o facto de também fazeres parte da primeira e única dupla 100% feminina da Nazaré?
Foi um desafio bastante grande porque tanto eu como a Micaela somos surfistas de alma, somos atletas, nem eu nem ela tínhamos uma preparação para pilotar uma moto, começámos tudo do zero. Isso trouxe o quê? Trouxe mais coragem, mais medos, mas mais garra de abrir uma porta grande. A verdade é que eu gosto sempre dos caminhos mais difíceis, é por isso que escolhi este caminho, porque era muito mais fácil ter contratado o melhor piloto e surfar. Mas eu escolhi o mais difícil, o que me agradou mais e o que eu acho que me vai trazer mais frutos no futuro.

Em que momento decidiste passar de uma carreira apenas como atleta para uma vertente de empresária também?
A verdade é que eu sempre fui surfista, sempre tive a minha vida toda ligada ao surf. E eu vejo o surf como muito mais do que um desporto, como um estilo de vida, uma terapia. E se a mim me ajudou bastante, eu quis abrir as portas para todo o tipo de pessoas que queiram experimentar este desporto maravilhoso que ajuda bastante a sair da nossa zona de conforto, a explorar os nossos medos, a conectar com a natureza. E eu muito cedo pensei: quero viver do surf e quero seguir este caminho. A Nazaré principalmente ajudou-me a acreditar nos meus sonhos, acreditar que nada é impossível, que basta sonhar, acreditar e conquistar. Comecei por abrir uma escola de surf, hoje em dia tenho uma escola de surf, a Progress Surf School, tenho uma loja, desenhei uma coleção de biquínis e fatos de banho com o meu nome e estou numa fase de dar retiros ligados ao surf também. Acho que o surf das ondas grandes me ajudou bastante a confiar cada vez mais em mim e a acreditar que tudo é possível.

As ondas grandes também me ajudaram a trabalhar em equipa, porque a verdade é que é um desporto de equipa e numa empresa uma pessoa sozinha pode ir longe, mas se estiver a trabalhar com uma boa equipa pode ir muito longe. Há ideias a explorar, há uma energia maior que se conecta. Com esta experiência das ondas grandes comecei a criar a minha própria equipa e tenho uma empresa com mais do que 15 pessoas.

Como é que descreves a Nazaré?
Nós temos aqui um tesouro, não é? Ainda agora estive na Índia e as pessoas perguntavam de onde sou, eu dizia Portugal, eles nem sequer sabiam onde é que é Portugal, mas automaticamente era: Portugal? Cristiano Ronaldo e Nazaré. É engraçado ver como de repente uma pequena vila cresceu e como o surf ajudou na receita turística de Portugal. Nós temos um turismo muito direcionado para o surf. A verdade é que o surf é um desporto saudável e é um desporto em que te conectas com a natureza, com a espiritualidade, e acho que todos nós procuramos um bocadinho disso.

Foto: Lili Zwirner

O facto de não teres sido convidada para o Nazaré Big Wave Challenge deixou-te desmotivada ou deu-te ainda mais motivação?
Eu sou uma pessoa que se move um bocadinho com a raiva. A raiva ajuda-me a ser mais forte, a acreditar, a ir mais à luta. Mas uma raiva saudável, não é de egoísmo ou maldade, uma raiva de dizer: dizem que não consigo, então ainda vou ser melhor. Tenho muita pena de não competir, mas se calhar para o ano é outra história. Estou cá para ver. A verdade é que eu já fiz uma carreira dedicada ao surf, tenho um público que me adora, que me abraça e eu sei que sou muito mais do que um campeonato de um dia.

O que é que sentiste ao ver um português no pódio este ano?
Acho que já estava na altura. Principalmente o Nicolau que é uma pessoa muito respeitada. Orgulho-me porque realmente isto é Portugal e acho que nós temos muita capacidade, muitos surfistas muito bons, e nunca fomos muito reconhecidos, porque o produto lá de fora é o melhor. Mas isso acontece em todo lado, não é? Não só no desporto, mas em tudo, infelizmente.

A esta altura da tua carreira, quais são os objetivos que tens? O que é que está por conquistar?
Acho que passa muito pelo nível pessoal, de um autoconhecimento. É óbvio que apanhar sempre uma onda maior e quem sabe para o ano também finalmente perceberem que há uma mulher portuguesa e que me possam convidar para o WSL, mas os meus objetivos pessoais passam muito agora pelo empreendedorismo e por criar outro tipo de eventos e de negócios ligados ao surf normal e ao surf das grandes. Nunca digo isto, mas a verdade é que a idade também te dá um conhecimento maior e eu acho que a minha carreira já está quase no fim, estou com 44 anos, e ainda há muito para explorar. Mas vou sempre surfar ondas grandes porque é lá que eu me sinto bem e é lá que eu consigo encontrar esta tal disciplina que eu preciso e que me dá garra.

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