Joana Schenker é uma das 40 mulheres mais influentes do desporto em Portugal para a Forbes e um nome histórico no mundo do bodyboard nacional e internacional. Em 2017 sagrou-se campeã mundial, mas este não é o único título no seu extenso currículo: venceu o título europeu quatro vezes e sagrou-se campeã nacional por sete vezes. No ano passado, por altura da publicação desta lista na edição de dezembro/janeiro, a Forbes falou com Joana sobre o seu percurso na modalidade, o peso do bodyboard em Portugal e o seu papel como atleta.
O que é que te levou ao bodyboard?
Eu comecei aqui no sítio onde nasci e cresci, em Sagres, e a modalidade cá tem uma grande história. Quando eu cresci os miúdos mais fixes da escola faziam bodyboard e sempre ouvi falar em bodyboard. Entretanto experimentei com os meus amigos da escola, e fiquei. Foi assim que eu entrei neste mundo, era muito natural eu entrar no bodyboard sendo de Sagres. É difícil dizer que houve um momento que me fez dizer ‘é isto que eu quero fazer’, simplesmente gostava tanto, comecei a passar os meus dias na praia e cada vez dedicava mais tempo. Fui evoluindo e depois comecei a competir nos júniores, foi assim um bocadinho uma coisa natural. De repente, quando dei por mim, estava completamente absorvida pelo bodyboard e já estava. Simplesmente já não dava para voltar atrás.

Quando começaste a competir a nível profissional em Portugal, que bodyboard encontraste e que bodyboard temos agora? Houve evolução?
Houve, no entanto, quando eu comecei, eu já faço bodyboard há 22 anos, foi assim um bocadinho o tempo áureo do bodyboard a nível mundial. Quando entrei na modalidade, havia muitas referências a nível internacional, em Portugal havia muitos praticantes, era uma modalidade bastante forte nessa altura. Agora diria que está diferente. De uma forma geral há menos bodyboarders na praia todos os dias, mas há muito talento neste momento, se calhar ficou mais apurado. Está simplesmente diferente, não apenas em Portugal, isto aconteceu a nível internacional. Portugal é apenas o reflexo disso. Portanto, é uma modalidade que eu acho que tem muito valor em Portugal, se calhar não tem tanta expressão na praia, no entanto há atletas com um grande potencial. Talento sempre houve, mas agora eu noto que há alguns atletas que realmente se estão a destacar e que têm, de certeza, muito para dar.
É possível viver do bodyboard em Portugal?
Eu sou a prova de que dá, no entanto não é fácil. Mesmo viver do surf, também não é fácil. O que eu tive de fazer e aquilo que acho que acontece muitas vezes é os atletas terem de ser muito versáteis naquilo que fazem. Têm que ser atletas profissionais, mas também pessoas públicas, também têm que representar o desporto um bocadinho fora da praia, têm que se tornar um bocadinho mais comerciais, no bom sentido. Não nos podemos focar apenas na competição, porque se calhar não chega para viver neste momento.
Nós não temos nem sequer um clube. Quer dizer, há clubes de bodyboard, mas os clubes não pagam ordenados aos atletas. Os atletas têm que ser autossuficientes a nível de patrocinadores. Também não temos apoios do Estado, cada atleta tem que realmente ser comercial ao ponto de se conseguir autossustentar com patrocinadores e, para isso, hoje em dia, temos que estar nas redes sociais, temos que estar fora da praia, temos que estar no mainstream. Eu acho que isso é assim um bocadinho a fórmula para viver do bodyboard neste momento.
Como é que funciona a gestão da vossa carreira nesse lado, essa gestão financeira?
Nós temos de ter patrocinadores que nos apoiam e temos de gerir o nosso budget. Um atleta profissional tem que viver desse budget, tem que pagar todas as despesas da competição, os treinos, mas também tem que viver, tem que pagar a conta da luz e por aí fora. Isso tem que ser o atleta a gerir. E sem patrocinadores isso é impossível. Cada atleta tem que arranjar patrocinadores suficientes para conseguir investir na carreira e também viver. E, no fundo, é isso.

É difícil conseguir patrocínios para a modalidade em Portugal?
É complicado, mas não é só para o bodyboard. Eu acho que no desporto em geral, fora do futebol, e mesmo na parte feminina [do futebol], não é fácil sermos atletas profissionais em Portugal atualmente em nenhuma modalidade. Temos que ser proativos, temos que criar valor à nossa volta, temos que nos tornar atrativos para o investimento das marcas. Isso é um trabalho de cada um.
Por norma são os atletas que vão atrás do patrocínio ou o patrocinador é que aborda os atletas?
Depende. Há as duas maneiras, conforme o interesse que há. Normalmente são os atletas que vão atrás ou que fazem propostas, mas também já me aconteceu uma marca precisar de um perfil específico e ir à procura.
Quando abordas um patrocinador, quais são os dados que tu lhe apresentas?
Eu faço um apanhado geral daquilo que represento. Em primeiro lugar é o valor desportivo, o currículo, os títulos e tudo mais. Mas também um bocadinho onde é que me insiro, qual é o meu público-alvo, quais são os valores que eu represento. Tenho que dar os dados de clipping, qual é o meu alcance, redes sociais. E também o trabalho que nós fazemos. Acho que isso é uma coisa muito importante que às vezes os atletas esquecem: o trabalho do atleta também é contribuir para a sociedade. Acho que essa parte do trabalho também torna os atletas atraentes para as marcas e cria aqui um valor acrescentado. No fundo é um apanhado de tudo o que eu faço, daquilo que eu represento e também daquilo que eu ainda aspiro.
Achas que o país olha para a tua modalidade de uma forma justa?
Não, não. Acho que podia ser mais justo. No entanto, o que é que é justo se formos olhar para as modalidades desportivas? Se calhar o desporto podia ser apoiado pelos resultados que se obtém a nível mundial. Mas aí, na verdade, se calhar não há muita justiça no desporto. Vou dar o meu exemplo: eu já fui campeã no mundo, se calhar não consigo fazer ou ganhar no desporto muito do que outros atletas que nunca ganharam nada desse género vão ganhar. Mas isso é porque a minha modalidade é mais pequena. Se formos por aí, acho que não é justo. Mas o justo aqui é muito relativo, porque tem a ver com o valor que a modalidade tem muitas vezes a nível comercial e o que é que gera em termos de riqueza. A nível comercial acho que não é justo. A nível de reconhecimento, até sinto bastante reconhecimento e acho que o bodyboard é bastante respeitado por aquilo que tem conquistado. É muito difícil de ter aqui uma resposta certa, porque é muito relativo.

Quando foste campeã mundial tiveste a visibilidade e o reconhecimento que estavas à espera?
Na verdade, acho que tive mais. Tive mais porque eu não estava à espera de nada. Eu simplesmente fiz a minha parte, as coisas correram bem e ganhei o Mundial. Foi o primeiro título mundial de um circuito profissional numa modalidade de ondas, mesmo a nível de surf, longboard, tudo que seja de prancha. Nunca houve em Portugal. Logo depois do título a bolha foi enorme, o impacto midiático foi enorme. Senti mesmo que tive muito reconhecimento e não posso nada queixar.
O que é que esse título significou para a tua carreira?
Acho que deu uma legitimidade muito maior. Já tinha vários títulos nacionais, vários europeus, esse foi o título que mudou um bocadinho, porque meteu-me na elite do desporto nacional durante algum tempo. E meteu na cabeça das pessoas que afinal o bodyboard tem bastante valor e trouxe algo para Portugal que nunca houve. Fizemos um bocadinho de história. Eu digo sempre que foi um selo de qualidade para toda a gente que não seguia o bodyboard.
Poder dizer que fui campeã do mundo dá-me outro estatuto dentro de um desporto. Abriu mesmo muitas portas.
Como é o dia-a-dia de uma atleta de bodyboard?
É uma rotina sem rotina. A rotina acaba por ser procurar as melhores condições todos os dias, que é uma coisa que não tem muita rotina. Temos que ser completamente flexíveis consoante o mar, as ondas, o vento. Podemos mudar cinco vezes de praia, podemos ir à praia quatro vezes ver o mar e não ir à água, mas de repente o vento muda e vamos. Temos que estar sempre um bocadinho à mercê da natureza. E isso acontece todos os dias, mas dentro desse dia não há uma rotina. Isso é o meu dia-a-dia. Claro que quando não há ondas eu faço outro tipo de treino, faço pilates, faço outras coisas também. Mas o mar tem sempre prioridade total.
O objetivo é entrar na água todos os dias?
Sim, entrar na água todos os dias. E na melhor das hipóteses, se estiver bom, duas vezes pelo menos. Se estiver muito, muito bom, nem sequer sair de água, ficamos lá o resto do dia. É por isso que eu digo que é uma rotina sem rotina.
Tens sete títulos nacionais, quatro europeus e um mundial. Ao longo dos últimos anos, tiveste concorrência na modalidade?
Tive sempre concorrência, na verdade. Porque os primeiros títulos nacionais ainda apanharam uma geração de bodyboarders muito boa que entretanto já se reformaram, mas que na altura ainda estavam a competir. Eu tive de competir contra elas e comecei a ganhar nacionais mesmo com elas lá. No Europeu foi igual e no Mundial também. No ano em que eu ganhei, as melhores do mundo estavam todas lá a competir. E mesmo neste momento, o nacional, por exemplo, está muito competitivo. Eu senti sempre que todos os títulos tiveram de ser trabalhados até ao fim, não foram propriamente fáceis. Isso foi muito bom, porque acho que nunca me deixou relaxar, nunca consegui descansar ou ficar encostada àquilo que eu já sabia fazer. Tive de me manter sempre em evolução, porque senão muito facilmente alguém me passava à frente.
Foi a presença dessas atletas tão boas que te fez ser melhor?
Sim, claramente, acho que isso foi fundamental. Eu só consegui apoios financeiros para fazer o circuito Mundial em 2016, que foi um ano antes de ganhar o circuito. Ou seja, na minha segunda época de Mundial venci o circuito. Todo o treino, todos aqueles anos em que não conseguia juntar os patrocínios para ir fazer o Mundial, mas que competia em Portugal e na Europa contra atletas muito fortes, quando fui para o Mundial eu vinha completamente preparada. E foi só mesmo porque eu tinha boa e forte concorrência onde estava a competir.
No bodyboard existe também algum tipo de discriminação em relação à presença de mulheres na água? Por exemplo, no surf a competição das mulheres em Pipeline é uma conquista recente, antes havia essa diferenciação.
Existe dentro da modalidade no geral, existe sempre uma representatividade inferior das mulheres em qualquer tipo de ondas. O bodyboard feminino já tem campeonatos em Pipeline quase desde o início, aí as mulheres já estavam presentes e, hoje em dia, quando há campeonatos também estão. Acho que, no geral, se formos olhar para a modalidade, sim, também no bodyboard há menos mulheres dentro da água. Não digo que somos discriminadas diretamente, mas é mais complicado para uma mulher estar dentro da água e principalmente em ondas em que há muita testosterona, como é o caso de Pipeline. No entanto, eu não senti isso muito na pele, vou ser sincera. Sei que há momentos em que isso acontece, mas não sou alguém que diga ‘senti-me extremamente discriminada aqui ou ali’. Acho que se a mulher chegar a um sítio ou a chegar a uma onda difícil, mas for com vontade de tentar e de apanhar ondas também e estar proativa naquele momento, vai apanhar ondas.
Achas que em Portugal as pessoas cuidam o suficiente do mar?
Acho que não, podemos fazer muito melhor. Não diria que ninguém cuida, mas acho que podemos fazer muito mais, porque ainda hoje em dia encontramos lixo na praia, no estacionamento, nas arribas, tudo que é falésias. Temos ainda muito para melhorar. Já fazemos um bocadinho.
E tu escolhes frequentemente falar sobre o tema nas redes sociais, por exemplo.
É uma oportunidade enorme de devolver ao mar tudo o que ele me deu. Eu sinto-me responsável por ele, porque tudo o que eu sou, eu devo ao mar. E agora tenho esta hipótese, tenho este espaço para falar com o público.

Tu falavas da necessidade de o atleta ter um papel na sociedade. No teu caso, é este o papel que tu queres ter?
É, acho que foi o papel que eu abracei, porque tanto estou a devolver ao mar, como também estou a fazer um bocadinho de ação social. Eu digo sempre que o atleta, o nosso principal papel na sociedade é inspirar. Porque, no fundo, é o que nós fazemos. Nós fazemos coisas para inspirar os outros. E vai no sentido disso.
Qual é que esperas que seja o teu legado no desporto em Portugal?
Eu gostava que qualquer miúda que pegasse uma prancha de bodyboard soubesse que se ela quiser ser bodyboarder profissional e até ser campeã do mundo, é possível. Que é uma carreira feliz, no fundo. Que é uma coisa bonita. Isso é o que eu gostava de deixar. Daqui a 20 ou 30 anos, quando eu já estiver muito velhota, alguma miúda dissesse: mas a Joana fez, eu também posso fazer.
Há algum objetivo que ainda não tenhas cumprido a nível profissional?
A nível de competição tudo o que havia para ganhar já foi ganho. Dá sempre para voltar a ganhar aquele título ou ir atrás de mais títulos e isso é válido, mas acho que o que me motiva mais agora é mesmo a questão técnica dentro do bodyboard. Eu gostava de ser ainda melhor bodyboarder do que eu acho que sou. Acho que tecnicamente tenho muito para evoluir e eu gostava de fazer isso. É quase mais uma questão de ego para mim: ser melhor, pronto. Mas eu sinto-me bastante realizada com aquilo que foi conquistado. No entanto, isso não me deixa ficar encostada. Ou seja, eu sinto que posso e quero lutar por mais títulos, mas não sinto que isso seja o meu único objetivo neste momento, porque já foi feito. Acho que posso relaxar nesse sentido, mas não me tira motivação ou ambição. Simplesmente deixa-me mais relaxada porque já foi feito.
Ir atrás de um título que já se ganhou é a mesma coisa do que ir atrás de um título que se pode ganhar pela primeira vez
Eu acho que é diferente. A primeira vez nós temos que nos convencer a nós próprios que é possível, é quase mais uma prova para mostrar a nós próprios, acho que é o mais difícil a nível psicológico. Nós próprios não sabemos se vamos conseguir ou não, se é possível ou não, há sempre aquela dúvida. O segundo, se calhar é diferente, mas não deixa de ser menos interessante. Se eu gostava de ganhar um segundo título mundial? Claro que sim. Sabendo que talvez agora a concorrência ainda é maior, portanto se tivesse um segundo título mundial seria uma recompensa maior porque eu sei que tinha sido mais difícil. Mas talvez em termos de impacto não teria o mesmo impacto porque era o segundo.