De mulher para mulheres. É a forma mais clara de descrever o trabalho de Marcela Ceribelli, que aos 12 anos já tinha a atitude de quem viria a trabalhar sempre a favor de uma sociedade melhor para qualquer que seja a mulher.
Fundou a Obvious em 2015 e ao longo de uma década transformou o projeto numa rede com diversos canais. Um deles chegou recentemente a Portugal. Um livro: Aurora – O despertar da mulher exausta. A Forbes falou com a autora sobre este projeto e todo o o seu trabalho. Que acabou por se tornar ainda mais necessário do que era no dia em que foi lançado.
Em que momento é que surge a ideia de escrever um livro?
Muito antes de ter um livro publicado, a escrita sempre fez parte da minha vida. Tanto que muitos dos textos que estão no ‘Aurora’ são textos que já estavam feitos e foram adaptados, porque para mim a escrita sempre foi uma maneira de colocar um pouco a ordem no caos. A escrita fez com que eu me encontrasse muito comigo. E eu sempre tive muito respeito e admiração por outras autoras de não-ficção, como Annie Ernaux, Rosa Monteiro, Roxane Gay, porque eu acho que esse foi um local que demorou muito tempo para podermos ocupar. As vidas femininas não pareciam dignas de não-ficção, não pareciam dignas de estar num livro. Restou-nos o romance, as mulheres poderiam falar sobre amor, mas não sobre as vivências delas. Então, eu sempre tive esse sonho de ocupar um lugar parecido com o dessas autoras. É claro que o meu primeiro livro traria alguma tese sobre mulheres na contemporaneidade. Quando escrevi Aurora, estávamos em tempos muito pandémicos ainda, eu acho que foi um momento em que podemos muito observar o que era ser mulher, porque o ambiente doméstico foi muito guardado para o feminino, mas de repente estávamos todos dentro de casa. Acho que ficaram muito escancaradas as diferenças e quais eram essas nossas exaustões. Durante muito tempo, na Obvious, eu falava que tínhamos como objetivo ser um local de felicidade feminina e que no podcast discutiríamos felicidade feminina. E aí eu percebi que as mulheres não estavam infelizes, elas estavam exaustas. E começa a premissa de Aurora, que é como vamos investigar as raízes da exaustão feminina, justamente porque eu acredito, e é algo que estou a levar para o segundo livro que está agora na reta final da escrita, que dores coletivas não devem ser tratadas na terapia. Se eu sinto a mesma coisa, tu sentes a mesma coisa, o que adianta termos uma indústria que fala que temos de ser mulheres melhores, que vamos dar conta. Não, algo no sistema está errado e não vamos resolver isso se cada uma de nós o encarar como um problema pessoal.
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E de acordo com as suas conversas e os testemunhos que lhe chegam, quais são os principais motivos que levam as mulheres a estar exaustas?
Há 400 páginas sobre isso, mas eu acho que existe uma raiz muito importante, que são todas as normas que se infiltram na nossa subjetividade. É tudo aquilo que fomos ensinadas, tudo o que a sociedade e, claro, o patriarcado – mas eu evito usar termos como patriarcado porque acho que afasta muitas pessoas que precisam entender os conceitos –, muito antes de nos entendermos como um indivíduo pensante, desejante, nos ensina o que devemos querer, quem devemos ser e o que não podemos fazer. Eles vão construindo narrativas, a narrativa que está nos filmes, na cultura popular. O ‘ficou para a tia’, a mulher retratada nos contos de fadas, que é a mulher que não tem um parceiro, então ela é infeliz. Tudo isso que há muito tempo vai construindo essa nossa subjetividade que faz com que nos domemos sozinha, que sonhemos aquilo que a sociedade quer que, mas não genuinamente o que sonhamos. E fomos acumulando, porque o problema dessa mulher neoliberal é que acumulámos objetivos, não trocámos. Então, a mulher neoliberal, ela tem ambição, mas ela é mal vista, porque se ela for só ambiciosa, ela não é uma mulher desejável. Essa mulher neoliberal, já ninguém lhe precisa dizer que o lugar da mulher é na cozinha, mas temos, pelo menos no Brasil, mas imagino que aí também, diversos programas de culinária que são para as mulheres modernas. Então, ainda tens de fazer a receita linda do Pinterest, ainda tens de servir uma mesa linda. De alguma maneira, continuamos a ser pressionadas a ser tudo, só que vão trocando os discursos. É por isso que estamos exaustas, não conseguimos perceber porque deves chegar a casa e sentir que deverias, depois de um dia de 16 horas de trabalho, fazer exercício físico pela saúde mental – entre muitas aspas, porque na verdade continua a ser porque queremos ser magras – deverias fazer uma refeição para ti porque isso é o mais saudável. É exaustivo. Ainda são as mesmas pressões, mas a sociedade é muito inteligente em mudar os discursos para que pareça que são desejos próprios.
Sente que por o livro estar a chegar a um país diferente, está também a falar para um público diferente ou acaba por ser uma mensagem universal?
Em 2022 fizemos um evento em Lisboa, foram dois dias e um público de mais ou menos 800 mulheres, entre brasileiras que moram em Portugal e portuguesas. O que eu ouvi das portuguesas que foram lá foi: vem para cá, nós precisamos mais da Obvious que o Brasil. A perceção delas era que Portugal estava ainda mais atrasado nessa aprendizagem. Então, eu acho que é um público parecido, até porque não temos uma barreira linguística, talvez a influenciadora fitness que tu segues, eu também sigo. Acho que acaba por ser um pouco parecido, mas do que eu senti, talvez Portugal precise ainda mais desse despertar.
“O que eu ouvi das portuguesas foi: vem para cá, nós precisamos mais da Obvious que o Brasil”.
A Marcela disse numa entrevista: “enquanto estiver viva, estarei a produzir conteúdos para as mulheres, estou aqui pelas mulheres”. Em que momento percebeu que era esta a sua missão?
Muito mais nova do que se possa imaginar. Eu comecei a produzir textos sobre mulheres e a questionar valores femininos quando ainda estava na escola. Quando tinha 12 anos, uma educadora da minha escola chamou-me. A minha escola não tinha uniforme e ela disse-me para parar de usar calções para ir para a escola porque os meninos mais velhos estavam a olhar. Eu escrevi um texto na época que dizia: os calções deveriam ser mais longos ou os meninos deveriam controlar-se? Isso foi em 2002 e 20 anos depois eu lanço o Aurora. Não sei, é algo que está em mim, eu venho de uma família de mulheres, eu sempre fui muito questionadora, desde muito jovem, então eu acho que talvez esse texto tenha sido um pouco a raiz de tudo. E deu certo, porque as meninas puderam usar calções.
A voz da mulher continua a incomodar?
Muito, muito. A voz da mulher, ela cabe num lugar pequeno e bem estabelecido. A partir deste local, não existe mais. E isso funciona muito de acordo com recortes. Por exemplo, para mulheres queer, elas podem praticar o amor delas contanto, por exemplo, que não invadam o espaço de família. As mulheres lésbicas podem ser hiper sexualizadas, mas família já é longe demais. As mulheres podem ter voz, contanto que elas, por exemplo, no ambiente profissional, não falem mais alto que um homem. E elas podem se empoderar, contanto que esse empoderamento ainda seja o que algumas autoras hoje chamam de colonizado: o empoderamento em que lutamos para mostrar mais os nossos corpos, em que tratamos o nosso autocuidado como um ato político. Mas esse autocuidado é sobre cuidados com a pele. A nossa voz, a genuína voz, não está nada, nada bem estabelecida ainda. Tanto que, na literatura, é impressionante como livros escritos por mulheres automaticamente são livros direcionados a mulheres e livros escritos por homens são para todos. Porquê? Quem disse? Então, acho que sim, acho que temos muitas falsas ilusões de evoluções, infelizmente.
Ao longo do livro, a Marcela fala de vários conceitos mais inseridos na vertente profissional, como a questão da ambição do ponto de vista masculino e feminino, a questão de as pessoas odiarem mulheres de sucesso, a necessidade de estarmos sempre ocupadas ou o síndrome do impostor. Neste universo, que conceitos mais incomodam?
O conceito central que incomoda é que às mulheres foram determinadas funções que têm trabalho emocional. Pedagogia, serviço de bordo de aviões, enfermeiras – mas não médicas porque aí já é longe demais –, tudo aquilo que envolve um cuidado. Só que quando as mulheres passam a ocupar cargos em que elas precisam cobrar mais do que cuidar, que são cargos de chefia, como o cargo que eu tenho hoje como CEO, é muito incompatível. A sociedade não está pronta para simplesmente aceitar um direcionamento feminino. São muito mais questionadas e é muito triste, porque falta-nos uma referência de liderança com os aspetos femininos. Porque os aspetos femininos, na essência, e agora não trazendo algo biológico, mas de construção, as características que são consideradas femininas, mas não características naturalmente femininas, como cuidado, empatia, compaixão, são muito bonitas. Então, muitas vezes, as mulheres, para ocupar esses lugares, elas escondem essas características consideradas femininas para serem respeitadas. Não basta as mulheres ocuparem cargos mais altos, precisamos reivindicar o lugar feminino para que possamos articular esses lugares com novas visões de liderança. Acho que isso é o mais doloroso e é um desafio grande dentro da minha profissão e dentro do cargo que eu ocupo hoje: conseguir combinar esses dois e não tentar um desempenho com características masculinas.
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Em relação à Obvious, como surgiu este projeto e como foi a trajetória até agora?
A Obvious este ano completa 10 anos. Estamos a falar sobre uma década de uma empresa que cresceu junto comigo, quando fundei a Obvious tinha 25 anos. E a sociedade mudou muito. As discussões que tínhamos em 2015 são muito diferentes das que estamos a ter em 2025. Em 2015, estávamos num momento de muita esperança, em que seria tudo muito promissor. Jamais diria em 2015 que hoje estaríamos a regredir em tantos avanços na sociedade, com valores de ultradireita que prejudicam muito as mulheres. Então, a Obvious foi evoluindo de acordo com isso e agora, mais do que nunca, a Obvious volta a ser política. Mas a Obvious surgiu justamente dessa minha semente de querer falar com mulheres e produzir conteúdos. Começa no Instagram, que era algo inovador na época, porque o Instagram ainda era um local muito de blog visual e não um blog de texto. E depois de uma necessidade de aprofundar essas conversas surge o podcast em 2019, quatro anos depois da fundação da Obvious. Em 2020 a Obvious cresceu e nasce Chapadinhas de Endorfina. Este é um ano muito importante também porque Chapadinhas faz cinco anos, é um ano de muitos aniversários icónicos. E eu acho que temos cumprido a nossa missão, porque eu digo que a Obvious tem uma maneira muito gentil de falar sobre assuntos difíceis. E eu vejo a Obvious muito como uma porta de entrada e isso não tem a ver com idade, porque eu sou abordada por mulheres de 60 anos, que dizem que mudou a vida delas, mas às vezes meninas de 15 anos.
Acho que continuamos a cumprir o nosso papel. A empresa mudou formatos, mas nunca o objetivo e é por isso que estamos aí, firme e forte.
Como é que conseguem chegar a tantas gerações? A linguagem tem de ser diferente?
É muito difícil, não é? Começámos a organizar de uma certa maneira: o podcast vai ter que envelhecer comigo. Eu tenho 35 anos, existem conteúdos do Instagram da Obvious que não falam nada comigo, mas eu tenho uma equipa de meninas jovens que estão a passar por aquilo. Entendemos que a página vai ser sempre uma porta de entrada, mas o podcast amadureceu comigo. Hás pautas do podcast que talvez na década dos 20s não se alcance, mas eu sei que eu estou a falar com mulheres mais velhas. Eu vejo quando as mulheres falam comigo. Sobre o podcast são mulheres mais velhas que falam comigo, enquanto na página do Instagram são meninas mais jovens. Alguém tem de falar para as pessoas mais velhas, ficou tudo muito jovenzinho. O que não é um problema, acho que sempre foi assim, mas como nós também éramos sentíamos que estávamos incluídas. Mas eu acho bom irmos amadurecendo os conteúdos connosco.
E conseguem também chegar ao público masculino?
Muito e isso é impressionante. Acho que aconteceu do ano passado para cá. Muitos homens, aumentou muito o público masculino. E temos mais homens que ouvem o podcast do que seguem a página. É muito interessante porque não é só nos números, muitas das mulheres que vêm falar comigo, dizem que puseram o namorado ou o irmão a ouvir. Isso é o melhor dos mundos, porque eles precisam ouvir. Não é à toa que eu te disse que evito falar patriarcado, porque não quero usar nenhum termo que faz com que eles se sintam repelidos. Nós precisamos deles, não tem jeito. É muito importante termos esses aliados.
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Como é que depois surgiu esta rede de diferente de canais – redes sociais, podcast, newsletters?
Cada um foi surgindo no seguimento de habilidades que nós temos, como é que iriamos falar com as pessoas. Então hoje, por exemplo Chapadinhas de Endorfina, o principal canal não é a página, são os eventos que fazemos. As newsletters vieram acho que de maneira natural, porque muitas vezes quem quer aprofundar um conteúdo, um carrossel no Instagram não é suficiente. Na newsletter consegues também conhecer muitas das pessoas que trabalham dentro da Obvious. E eu acho que o livro acaba por ser um outro canal, que foi um desejo meu de transformar aquilo em algo que fosse menos efémero. E cumpriu, porque eu escrevi este livro entre 2020 e 2021 e estou a falar sobre ele em 2025. Livros têm vidas muito mais longas, é bonito demais.
Falando de um projeto que nasceu e acontece muito no digital, o que é que é urgente mudar na internet para que possa ser um ambiente mais positivo e seguro para as mulheres?
Hoje, os donos, quem manda ali. Nós estamos muito prejudicadas. Precisamos de regulamentação séria para que as crianças que estão na escola não continuem a sofrer bullying depois de chegarem a casa, que não possam ter acesso a elas. Para que as meninas jovens não recebam mensagens tão diretas sobre os seus corpos. De controlar o discurso de ódio, as vendas de produtos que não funcionam. É preciso regulamentar, chega a uma hora que não adianta romantizar. No âmbito individual, cabe-nos a nós questionar a nossa relação com as redes.
Para quem até aqui não conhecia o projeto, o que é que gostava que eles soubessem sobre este livro?
Eu gostaria que eles soubessem que este não é um livro de autoajuda, não é um livro que traz soluções. Este livro é um convite para que se troque o autojulgamento pelo questionamento. Que todos passem a ter um pouquinho daquela Marcela que questionou quem na época da escola era uma autoridade máxima. Que as mulheres aprendam a ter um tempo de: espera, isso pertence-me? Isso é meu ou é do outro? Eu acho que é isso que o Aurora se propõe, a questionar. Eu jamais teria escrito um livro de forma tão leviana a ponto de achar que eu tenho a solução, mas acho que podemos chegar a isso no futuro.