O que te levou ao surf das ondas grandes e à Nazaré?
A onda que me recordo na infância, tinha por volta dos seis anos de idade, com a prancha da minha mãe. Mas eu nasci imersa numa família de surfistas. O meu pai é fabricante de pranchas de surf e a minha mãe surfava também, eu sou a caçula, o meu irmão e a minha irmã já surfavam, e o programa da família era ir à praia no fim de semana. O meu pai ia todos os dias, muito cedo, mas no fim de semana reuníamos a família. Eu sempre me vi no universo do surf, sempre tive a certeza que trabalharia com o surf de alguma forma.
Em que momento decidiste que querias surfar ondas grandes?
Eu sempre tive uma carreira muito positiva no surf. Comecei nas competições amadoras no Rio de Janeiro, viajava o Brasil todo nas competições nacionais, e em seguida profissionalizei-me. Depois houve um gap muito grande de competições no Brasil, então naquele momento eu e muitos outros surfistas ficámos sem um norte. Desde muito nova também trabalhei com televisão, fotografia, então foi uma fase da vida em que me dediquei um pouco mais ao free surf, sempre mantive o meu lifestyle ligado ao surf. Depois eu tenho a dupla nacionalidade francesa, então decidi morar em França e sair um pouco da bolha do Brasil. Foi até um pouco louco porque eu estava numa fase incrível no Brasil, estava na televisão, mas algo me puxava, queria expandir os meus horizontes para o mundo. Fui morar em França e lá vi-me mais próxima do desporto de ondas grandes. Em Hossegor é um pouco diferente do que fazemos aqui na Nazaré. Aqui fazemos o tow-in, que é o surf rebocado com uma corda que liga o jet ski ao surfista, e lá eles fazem o step off, em que o surfista pula do jet ski diretamente para a onda para a surfar. Eu ficava a ver aquilo de fora e pensava: ‘não quero estar aqui fora a olhar, quero estar lá dentro a apanhar essas ondas’. Eram ondas já grandes, difíceis, que precisavam mesmo da assistência de uma mota de água, e eu precisava de me estruturar para isso, precisava estar mais envolvida.

Mas o que mais me puxou para o mundo das ondas grandes foi um dia em que eu parei, estava a refletir muito sobre a minha carreira, a ver-me como surfista profissional. Foi como se eu tivesse saído de mim e me tivesse visto de fora. Desde nova até àquele dia como surfista profissional: o que é que eu queria deixar como legado? Como é que eu queria que as pessoas me vissem? Estava a sentir um vazio dentro de mim, não estava completa. Foi aí que decidi tentar as ondas grandes, pensei: ‘acho que é isso que está a faltar na minha carreira e vou tentar. Se gostar ótimo, se não tudo bem, mas quero tentar’. Fui, tentei, procurei profissionais, depois envolvi-me com o Ian [Cosenza], que também estava no mesmo segmento, foi uma coincidência que somou muito para os dois. Começámos o tow-in, começámos a vir para a Nazaré e quando me vi já estava nessas ondas gigantescas. Quando vi estava a ser convidada para as competições mundiais, estava dentro da melhor equipa do mundo de tow-in. E foi.
Há outro lugar como a Nazaré?
Não há outro lugar como a Nazaré, não há mesmo. A Nazaré é única, é muito especial, tem o canhão que dá essa potência para as ondas ficarem realmente gigantescas. Não há um lugar parecido com a Nazaré. Se me perguntares a onda que eu mais amo surfar, eu diria que é o Grower na Indonésia, que é outra onda perigosa, mas com características totalmente diferentes da Nazaré. Mas ondas desta potência e deste tamanho só na Nazaré.
É um desporto onde não há espaço para erro, como te preparas?
Eu preparo-me o ano inteiro para a temporada da Nazaré. Atualmente tudo o que faço voltado para o desporto é a pensar na Nazaré, mesmo que durante o ano vá viajar para outros tipos de ondas, ou participar em outros tipos de campeonatos. No fundo, tudo tem alguma conexão que me leve a evoluir para estar aqui na Nazaré. Eu faço preparação física muscular, procuro deixar os músculos bem fortes para me protegerem dos impactos da onda, esta onda é muito forte. Quando estou aqui na Nazaré, gosto de treinar apneia, também muita natação, não faço apneia estática. Quando estamos ali enrolados numa onda, geralmente leva no máximo uns 40 segundos, que parece pouco, mas quando estás na turbulência e naquela potência equivale a três vezes mais o tempo que ficámos ali. Então treinamos muita apneia em movimento, levamos os pesos para dentro de água para treinar. É estar forte para aguentar os impactos e com o mental bem confiante e relaxado. E o que ajuda muito no mental é a equipa que eu tenho que me dá muita confiança e toda a estrutura que conseguimos montar aqui na Nazaré. Temos as melhores motos, os melhores equipamentos, e a interação entre a minha equipa que é fundamental para me sentir segura. Tem a ver com a confiança.

A preparação mental é tão importante quanto a física?
Eu vejo como um complemento, acho que é 50/50. O físico e o mental estão juntos para nos deixar a 100%, na verdade temos de estar a 110%.
Qual é a sensação de surfar uma onda grande?
É difícil falar. Nós sentimos medo, não há como não sentir medo, todos sentem, é normal, mas a vontade estar ali é muito maior. Acho que na hora em que estamos a surfar não nos passa assim tanta coisa na cabeça, é um momento bem rápido e nós temos de estar muito concentrados em fazer a onda bem feita para não cair. Mas vêm sentimentos, é uma mistura de medo com satisfação, adrenalina e muito amor pelo desporto. Quando saímos da onda é uma sensação de realização incrível. A sensação final, da realização do trabalho bem feito e de saber que somos capazes de fazer isto, é o que vence. Vence o medo, vence todos os bloqueios que vão passando pela nossa cabeça.
É difícil aprender a controlar esses bloqueios?
Não há um exercício específico para isso, é saber lidar com isso no dia em que estiver a acontecer. Na verdade, a espera [num dia de competição] gera um sentimento de expetativa, que é um sentimento que eu particularmente não gosto muito. Eu prefiro pensar que só tenho de ir lá resolver o meu trabalho, sair da água e o trabalho está feito.
É possível definir o melhor surfista de ondas grandes do mundo?
Eu acho que uma prova de surf nem sempre define o melhor do mundo num conjunto inteiro. Nesta prova por exemplo [Nazaré Big Wave Challenge 2024] só tivemos 40 minutos para ser dividido entre a dupla, é muito pouco. Às vezes perde-se uma prancha, vamos numa onda errada, ou qualquer coisa que pode vir a acontecer já tira um pouco do tempo e é difícil mesmo mostrar o que tens de melhor. Eu acho que um campeonato nem sempre define quem é de facto o melhor surfista, mas podemos dizer que o Lucas Chumbo realmente está acima do nível de qualquer surfista da Nazaré. É inquestionável. Seja no free surf, nas competições, ele está sempre a mostrar as melhores performances e a envoluir muito o desporto.

O quão importantes são os patrocinadores na modalidade, por exemplo para vocês terem espaços como o vosso armazém?
O início deste armazém foi um projeto feito pelo Ian, ele é que idealizou tudo inspirado num armazém de uma marca muito grande que já havia aqui na Nazaré, porém é uma marca, então o armazém é voltado para um lado mais comercial ligado aos clientes deles. O nosso é de total usufruto do espaço. É algo para nos deixar mais confortáveis, porque a Nazaré já nos traz muito medo, adrenalina, é um clima frio que também tira o conforto, então precisávamos de algo para nos sentirmos mais acolhidos e confortáveis para ir lá e enfrentar essas ondas, que não é nada confortável. Na época ele tinha um patrocinador que é a Yuki, apresentou-lhes o projeto e eles aprovaram, acreditaram na ideia. Na verdade, no primeiro ano eles forneceram a mota de água, que já era bem cara, e no ano seguinte o Ian mostrou-lhes a importância de ter este espaço, não só para a evolução dos atletas, como também para o nome da marca. Eram poucas marcas que estavam a investir na Nazaré. Ele deu um budget inicial e criámos tudo, pensámos o que seria importante para nós, por exemplo o ginásio, o espaço para guardar as pranchas, elas são super pesadas, vão de 3 a 12 kg. Fizemos esta sala de estar, de reunião, uma mesa de escritório, uma cozinha básica para nos alimentarmos entre uma sessão e outra. E fomos realizando aos poucos. A cada ano nós investimos também, não esperamos só pelos patrocinadores, mas nós como atletas tomamos iniciativa para fazer o espaço estar cada vez melhor. Essas nossas inciativas são reconhecidas pelos patrocinadores, eles notam o cuidado que temos com a nossa base e acho que é por isso que ela é uma das mais completas daqui do porto de abrigo.
Já deviam haver mais marcas a investir?
Nós costumamos comparar o tow-in com a Fórmula1. Se olharmos bem para o cenário aqui na Nazaré, vemos que as equipas têm as suas boxes, que seriam os armazéns onde nos preparamos para ir para a ação, guardamos as nossas motas de água, os nossos equipamentos. Nós precisamos de um operacional de mecânica também, de logística, as motas sofrem muito com o impacto, às vezes elas caem e perdemos peças e necessitam concerto. Comparando a algum desporto, seria realmente a Fórmula 1, porque no tow-in também trabalhamos em equipa e precisamos de um espaço para operar. Eu vejo o futuro ser esse, a termos mais marcas envolvidas, marcas de grande porte, totalmente fora do seguimento do surf. Acho que o surf de ondas gigantes tem esse espaço, é um fenómeno da natureza, nós realmente somos pessoas únicas no mundo por enfrentarmos estas ondas. É como estares num carro a correr a 300 km por hora. É muito arriscado. Eu acho que isso traz um espaço de coragem, de bravura, de organização, seriedade, que envolve marcas que trabalham com esse segmento também. Acho que o surf de ondas grandes já chegou a um patamar bom, mas a margem de crescimento ainda é muito grande.

E o que te levou a criar a tua própria marca?
Eu sempre quis ter uma identidade minha, criar uma marca, imprimir a Michelle de alguma forma que eu pudesse transmitir para outras mulheres e para outras pessoas, até mesmo para aqueles que não praticam surf, mas de certa forma têm uma admiração pelo desporto. Pensei em criar uma coleção de roupa que é o mais tradicional, mas parei para pensar e disse: Eu sou surfista profissional, sou filha de um shaper fabricante de pranchas que fez as minhas pranchas a vida toda, vou lançar a minha linha de pranchas de surf. Acho que a maior identidade que poderia imprimir de início seria isso. Então, em conjunto com o meu pai, eu elaboro as medidas, faço toda a parte de design, das cores, da identidade visual das pranchas. A prancha tem dois conceitos, um que é a decoração, as pranchas são lindas, têm um brilho, polimento, cores únicas. Aquela pessoa que talvez não surfa, mas quer trazer um pouquinho do surf para dentro da casa dela, pode decorar. E as pranchas são 100% funcionais e boas.
A Caity Simmers tornou-se viral recentemente com a frase “Pipeline is for the f****** girls”. No surf de ondas grandes, onde há mais homens a competir do que mulheres, tiveste alguns momentos em que te apeteceu dizer algo do género?
Aqui na Nazaré eu nunca senti a necessidade de ir em busca do meu espaço porque realmente sempre fui muito bem recebida pelos homens, pelos surfistas locais, pela minha equipa. Eu sempre fui a única mulher da equipa, e sempre me senti muito acolhida como mulher. Eu acho que nós mulheres que surfamos aqui na Nazaré temos um espaço fundamental e muito importante. O facto de haver mulheres no line-up traz uma energia diferenciada e um respeito muito grande de quem está ali a compartilhar esse espaço connosco. Aqui na Nazaré nunca tive essa necessidade de falar, mas sei que em outros lugares do mundo, por exemplo o Havaí, as mulheres tiveram de realmente quebrar um bloqueio muito grande e hoje estamos a vê-las em Pipeline. E elas não estão só ali a tentar surfar Pipeline, que é uma das ondas mais perigosas do mundo, elas estão de facto a surfar com muita técnica, sabedoria e com certeza o destaque dessa competição foram as mulheres. O surf feminino hoje entrou num outro patamar, outro nível, e nós mulheres já estamos a ser vistas de uma forma mais respeitada, conscientes do que estamos a fazer.
Que é mais do que apenas o desporto?
É, havia muitos comentários, por exemplo: “Ela é doida, não sabe o que está a fazer, ela desce a onda como uma doida”. Não, nós sabemos o que estamos a fazer, estamos a descer a onda melhor que muitos homens, na verdade.
A pressão é maior para vocês?
Há muita pressão, como vimos a evoluir bastante… No meu caso pelo menos, posso falar que a minha evolução foi muito rápida, as pessoas seguiram isso comigo e acompanham-me nisso. Quem torce por mim, sente muita expetativa da minha parte. Isso por um lado é bom porque é um apoio, mas ao mesmo tempo é uma cobrança. Eu preferia ir lá, fazer o que eu gosto, fazer para me divertir, estar feliz ali. Mas essa parte de ter que dar um resultado, para mim é um pouco de pressão.

Qual consideras ser o impacto que tu, a Maya e a Justine têm para as surfistas mais novas?
É um impacto comparado ao que a Caity disse: O espaço é para as mulheres. Acho que o impacto é esse, outras meninas estão a ver que é possível. Hoje temos bastantes meninas na Nazaré que vêm para experienciar e verem se gostam, outras já dá para ver que gostam e querem seguir uma carreira. Isso é muito bom. Eu sei que nós influenciamos muito nisso, a Maya, a Justine e eu. Nós de facto estamos a abrir espaço para uma nova geração que aí vem e isso é muito bom. Eu vejo-as dentro de água a dedicar-se, a encontrar equipas. Eu sei que nós temos influência nisso e é uma responsabilidade muito boa. Quando eu vi, já era uma referência, uma inspiração de coragem para outras mulheres. Eu comecei a receber muitas mensagens nas minhas redes sociais. Aí é um momento em que paramos para analisar o que representamos. Por mim só queria ir lá e surfar, apanhar as minhas ondas, ver os meus próprios limites. Até que percebi tudo o que estava a representar, isso é o que tem de mais grandioso.
Eu acho que inclusive acabamos por ser uma referência para muitos homens. Há um lado machista que eu já ouvi, e que sei que muitos pensam dessa forma: ‘se ela pode, eu também posso’. Mas nem sempre a pessoa está preparada para isso e só o facto de ver que é uma mulher acha que talvez seja mais fácil ou que ele também pode, porque se está a comparar a uma mulher e já está a definir a mulher como algo fraco. Enquanto que nos estamos a preparar, treinar, com uma boa alimentação, focadas, estruturadas. Não é só ir ali e surfar, tem muito por trás. E nós estamos preparadas, por isso é que estamos neste lugar.
Consegues definir objetivos para o ano inteiro?
O objetivo principal acaba por ser sempre a Nazaré, por ser o mais difícil, o mais desafiante e atualmente os patrocínios vêm porque estamos aqui, a estrutura maior tem de ser aqui, e tudo o que fazemos durante o ano é relacionado para estar aqui de alguma forma. Porque tudo é treino. Quando acaba a temporada na Nazaré vamos para o Brasil e dividimo-nos muito entre o Brasil e a Indonésia. Estamos a descobrir cada vez mais o quanto o Brasil é uma base incrível para quem quer seguir a carreira de ondas grandes. Recebemos muita ondulação no Brasil e com o apoio das motas de água conseguimos explorar cada vez mais as ondas. E com a frequência de ondas que há no Brasil vira um treino espetacular, estamos a treinar o ano inteiro. Estamos em Saquarema, que é o berço do surf brasileiro, recebe a etapa mundial de surf. Saquarema é espetacular e as ondas são fortes, para mim é um dos melhores treinos para a Nazaré. Depois também vem um swell, por exemplo, na Indonésia e vamos para lá. Vamos sempre em busca de onde é que a onda vai bater mais forte. Vivemos a seguir o swell.
E defines objetivos em relação à onda que gostavas de surfar?
Eu posso dizer que o que queria atingir em relação a tamanhos de onda e às minhas superações, já atingi aqui na Nazaré. Talvez eu já tenha apanhado uma das maiores ondas do mundo, por mais que ela não tenha sido considerada, isso é uma questão muito complexa. Mas eu sinto-me muito satisfeita com as ondas que já apanhei na Nazaré, com os tamanhos das ondas. E é muito difícil eu medir a minha onda, mas já medi ondas que deram mais de 21 metros, medi com oceanógrafos, mas elas virem a ser oficiais é uma outra operação. Eu nunca tive o objetivo de apanhar a maior onda do mundo, nunca foi isso que me atraiu. Acho que isso é uma pressão muito grande que eu não gosto de colocar em cima de mim, não é isso que me move na Nazaré, mas eu sempre quis ter uma das melhores performances aqui na Nazaré, ser uma das melhores surfistas. Estou feliz com o que tenho vindo a alcançar.