Novo combustível nasce em Setúbal a partir de águas contaminadas. Os segredos do negócio

A Eco-Oil – Tratamento de Águas Contaminadas é uma empresa portuguesa localizada no porto de Setúbal, direcionada para o tratamento de águas contaminadas com hidrocarbonetos. Esses resíduos, de origem marítima provenientes dos navios-tanque destinados ao estaleiro de reparação da Lisnave, mas também de origem terrestre, ganham aqui uma segunda vida como fuelóleo, dentro do espírito…
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A Eco-Oil agarra em águas contaminadas com hidrocarbonetos e separa a fração de hidrocarbonetos para produzir um novo combustível, ao mesmo tempo que trata a água contaminada e a devolve ao rio Sado.
Economia

A Eco-Oil – Tratamento de Águas Contaminadas é uma empresa portuguesa localizada no porto de Setúbal, direcionada para o tratamento de águas contaminadas com hidrocarbonetos.

Esses resíduos, de origem marítima provenientes dos navios-tanque destinados ao estaleiro de reparação da Lisnave, mas também de origem terrestre, ganham aqui uma segunda vida como fuelóleo, dentro do espírito da economia circular.

Nuno Matos, Eco-Oil

Nuno Matos, diretor-geral da Eco-Oil, explica como se consegue fazer nascer outro combustível, a partir de resíduos que, outrora, não seriam aproveitados.

A Eco-Oil assume o adequado encaminhamento e tratamento dos resíduos e misturas de hidrocarbonetos gerados a bordo dos navios-cisterna e que estão misturados em água. Que quantidade de combustível conseguem extrair, em média, de um navio-tanque?
O principal foco da Eco-Oil consiste em recolher e tratar as águas de lavagem provenientes dos navios-tanque, que se encontram contaminadas com resíduos tóxicos e perigosos para o ser humano e para o meio ambiente. Ao recolher estas águas poluentes, conseguimos não só evitar o seu descarte no mar, como também criar um novo fuelóleo 100% sustentável. A partir de diversos processos físico-químicos e operações unitárias, é possível recuperar a fração de hidrocarbonetos e produzir o combustível, ao mesmo tempo que é tratada a água contaminada.

Do conjunto dos resíduos recolhidos, 99% é reciclado e, apenas 1%, que inclui sedimentos como areia e lama, é encaminhado para aterro próprio. Destes 99% de matéria que processamos, 85% corresponde a água que, uma vez tratada e livre de qualquer elemento poluente, é devolvida ao rio Sado. Os restantes 15% correspondem a hidrocarbonetos, que reciclamos para criar um novo fuel sustentável.

“Dos 99% de matéria que processamos, 85% corresponde a água que, uma vez tratada e livre de qualquer elemento poluente, é devolvida ao rio Sado. Os restantes 15% correspondem a hidrocarbonetos, que reciclamos para criar um novo fuel”.

Qual é o destino dado a esses resíduos de combustíveis?
Após uma série de processos de recuperação, operações unitárias, e tratamento, onde se inclui uma micro refinação, os resíduos de combustível, que constituem a fração de hidrocarbonetos recuperados do processo de tratamento das águas contaminadas, dão origem ao combustível reciclado.

Desde 2012, e como resultado de uma extensa investigação sobre o reaproveitamento destes resíduos, começou a ser possível processá-los e utilizá-los como matéria-prima para a produção do nosso fuelóleo industrial – o EcoGreen Power. Deste modo, o que antes era um resíduo destinado a recuperação energética e com potencial de aproveitamento limitado, é agora reintroduzido na cadeia de valor como um novo produto, prolongando a sua vida útil e contribuindo para a economia circular.

“O que antes era um resíduo destinado a recuperação energética e com potencial de aproveitamento limitado, é agora reintroduzido na cadeia de valor como um novo produto”.

O que é feito à água, uma vez tratada?
Após passar pela unidade de tratamento, a água livre de substâncias tóxicas é devolvida ao seu local de origem: o mar. Este processo requer uma regulamentação elevada, com o objetivo de garantir a conservação do meio ambiente, o que se pode comprovar pela comunidade de golfinhos do porto de Setúbal, onde nos encontramos, e restante biodiversidade do estuário do rio Sado, com uma importante comunidade piscatória e refúgio de muitas aves migratórias nos seus trajetos anuais.

“Após passar pela unidade de tratamento, a água livre de substâncias tóxicas é devolvida ao seu local de origem: o mar”.

O trabalho da Eco-Oil é, a nível nacional, executado exclusivamente em Setúbal. É possível que a empresa se expanda a outros portos em Portugal? Isso está pensado?
Atualmente, a Eco-Oil encontra-se num único local, junto ao estaleiro naval da Lisnave, em Setúbal. Neste espaço temos a capacidade de dar resposta às nossas principais funções, desde a recolha das águas contaminadas dos navios-tanque, que atracam no nosso terminal, até ao seu tratamento. Todo o processo de recolha, tratamento e processamento da matéria é realizado neste mesmo local, o que permite centralizar a operação com maior segurança. É também aqui que os camiões-cisterna dos clientes que utilizam o EcoGreen Power são abastecidos.

De momento, não temos planos relativamente à expansão. Na Eco-Oil vamos progressivamente avaliando oportunidades de melhoria e otimização, sem nunca esquecer que a nossa prioridade é consolidar o EcoGreen Power como fonte sustentável da indústria e contribuir para a redução da pegada carbónica industrial.

A Eco-Oil está integrada no setor de reciclagem de combustíveis. Além do setor marítimo, trabalham também com outras indústrias? Que tipo de indústrias?
Somos a principal empresa do país que recebe e trata resíduos perigosos de origem marítima e este é o nosso foco de atuação. Estamos vocacionados para grandes volumes transportados por via marítima e, por esse motivo, somos procurados internacionalmente como unidade de destino e valorização de resíduos. Trabalhamos igualmente com a indústria nacional e com operadores de gestão de resíduos.

“Estamos vocacionados para grandes volumes transportados por via marítima e somos procurados internacionalmente como unidade de destino e valorização de resíduos”.

Os resíduos de carburantes poluentes que aproveitam servem para produzir que tipo de fuel? É utilizado em que tipo de máquinas?
O nosso fuel 100% reciclado e sustentável, designado EcoGreen Power, destina-se ao setor industrial e, por ser quimicamente semelhante ao combustível fóssil de refinaria, não implica qualquer tipo de alteração nas instalações dos clientes que o queiram utilizar.

O combustível é consumido em caldeiras, fornos, ou outras aplicações de natureza industrial e permite aos nossos clientes acrescentar sustentabilidade aos processos de produção.

O facto de ser um combustível que é submetido a um processo físico e químico torna-o quanto mais caro? E isso é compensador para quem o utiliza? Pode dar exemplos?
O processo de produção do EcoGreen Power é ele próprio muito eficiente, o que torna o seu preço semelhante ao do combustível fóssil, mas, ao contrário deste, apresenta vantagens que incrementam valor para as indústrias que optam por utilizá-lo, tanto a nível da sua rentabilidade, como a nível do impacto ambiental.

Através de um estudo independente realizado pelo nosso cliente Grupo Bel, comprovou-se que o EcoGreen Power apresenta melhor performance comparativamente a um combustível tradicional de refinaria. O nosso fuel sustentável apresenta um rendimento 4% superior ao combustível fóssil, enquanto reduz emissões poluentes de dióxido de enxofre e de azoto na ordem dos 90%. Por todas estas razões, utilizar o nosso fuel é de facto compensador e benéfico para as indústrias. Por um lado, contribui positivamente para o desempenho dos equipamentos de queima e, por outro, reduz significativamente o impacto poluente no ambiente. Deste modo, a indústria que opta por utilizar o EcoGreen Power não só utiliza um fuel 100% reciclado e sustentável, como ela própria se torna mais sustentável.

Este “green value” é crucial para manter o EcoGreen Power no mercado em competição direta com os combustíveis tradicionais e sem qualquer incentivo de natureza fiscal ou outro, que corporize a diferenciação positiva deste combustível sustentável.

Este combustível, sendo à base de hidrocarbonetos, como é que consegue ser menos poluente do que o combustível fóssil?
Desde logo porque partimos de um resíduo e não de uma matéria-prima extraída da natureza. Repare, na Eco-Oil, as águas de lavagem dos navios-tanque são a base para a produção de um novo fuelóleo, o que contribui para evitar descargas ilegais em alto mar e para prolongar a vida útil dos resíduos, enquanto fuel 100% reciclado.

Para além disso, o seu processo de produção emite menos 99,75% de CO2 para a atmosfera do que um combustível fóssil. Em 2022, recebemos o selo internacional ISCC Plus que comprovou esta redução de emissões de CO2, colocando-nos no pódio como o único fuelóleo com esta certificação completa. Portanto, as indústrias que optam por utilizar o EcoGreen Power em vez de um combustível fóssil contribuem ativamente para reduzir a sua pegada carbónica.

“As águas de lavagem dos navios-tanque são a base para a produção de um novo fuelóleo, o que contribui para evitar descargas ilegais em alto mar e para prolongar a vida útil dos resíduos, enquanto fuel 100% reciclado”

A descarbonização de indústrias pesadas passa, então, pela utilização deste género de combustíveis alternativos?
Sim, sem dúvida. Utilizar o EcoGreen Power é dar um passo em frente no processo de descarbonização da indústria, uma das nossas prioridades. Sendo o nosso fuel sustentável, estamos a desempenhar um papel importante na redução da poluição produzida em toda a cadeia de valor do produto.

Acreditamos que o caminho para a descarbonização da indústria passa pela oferta diversificada de energias sustentáveis e renováveis. O EcoGreen Power vem aumentar as opções disponíveis, permitindo que as indústrias possam ter acesso a um fuelóleo com baixa pegada carbónica.

Atualmente, os consumidores olham de lado, cada vez mais, para tudo o que se relacione com combustíveis de origem fóssil. Esse facto, não torna difícil a aceitação do vosso fuel?
Apesar do nosso fuel ter como matéria-prima resíduos de hidrocarbonetos, associados com combustíveis de origem fóssil, o que distingue o EcoGreen Power é o seu compromisso com a sustentabilidade.

Em primeiro lugar, a base de produção do nosso fuel é composta por resíduos que, de outra forma, seriam desperdiçados, mas neste caso são aproveitados para aumentar o seu ciclo de vida num novo produto, o que está em linha com os objetivos de desenvolvimento sustentável, numa clara aposta na economia circular.

A valorização energética de resíduos corresponde a uma visão ultrapassada. Todos os resíduos com potencial para serem reciclados devem ser tratados para serem novamente reintroduzidos na economia e produzir um novo produto, como é o caso do EcoGreen Power, o que corresponde à melhor interpretação do Pacto Ecológico Europeu.

Para além disso, o processo de produção do EcoGreen Power emite menos 99,75% de CO2 comparativamente à produção de um fuel de refinaria, o que nos garantiu o selo ISCC Plus.

Exatamente por estas razões, o EcoGreen Power contribui para mudar essa mentalidade, como se pode ver pelo facto de termos clientes que nos procuram precisamente pelo fator da sustentabilidade.

“A valorização energética de resíduos é uma visão ultrapassada. Todos os resíduos com potencial para serem reciclados devem ser tratados para serem novamente reintroduzidos na economia e produzir um novo produto, como é o caso do EcoGreen Power”.

A sociedade está a eletrificar-se. Como vai a Eco-Oil evoluir para estar alinhada com estes princípios?
A eletrificação é importante para o futuro da sociedade e trará consigo transformações significativas nos diversos setores industriais, incluindo o setor energético. Todos os processos que puderem ser eletrificados devem sê-lo. A Eco-Oil não é exceção e, por isso, estamos a explorar a possibilidade de utilizar o nosso combustível, ou a matéria-prima recuperada, noutras aplicações que possam contribuir para o incremento da sustentabilidade e aumentar o leque de aplicações. A pirólise ou a gaseificação podem ser uma via para a produção de combustíveis sintéticos, que continuarão a ser necessários para algumas atividades económicas que, pela sua natureza ou exigência, não poderão ser eletrificadas.

No entanto, é importante averiguar se esta transição faz sentido, pois o aumento da eletrificação da economia gera maior pressão ao sistema electroprodutor para ter capacidade de entrega dessa mesma energia.

Por outro lado, o mercado dos resíduos estará nos próximos anos em forte transição. Resíduos para produção energética deixarão de ser opção quando o CO2, por via fiscal ou através do comércio de emissões, passar a ser um custo relevante e as indústrias forem forçadas a encontrar alternativas para a captura do CO2 produzido.

Que objetivos têm para 2023 e para os próximos anos?
Acima de tudo, o grande objetivo da Eco-Oil é fortalecer o papel do EcoGreen Power como fonte de energia sustentável e apoiar a transição energética na indústria.

Mais concretamente, para 2023, temos diferentes objetivos que gostávamos de atingir. Ambicionamos aumentar a nossa presença no mercado de empresas alinhadas com os nossos valores de sustentabilidade, como é o caso do mercado têxtil e da indústria alimentar. Procuramos alcançar um aumento de vendas entre 15% a 20%, com a expectativa de faturar 14 milhões de euros até ao final do ano.

Relativamente ao futuro, vamos continuar a investir na colaboração com a Academia, com vista a explorar e expandir novas áreas de desenvolvimento, através do acompanhamento e evolução dos processos emergentes de transformação dos resíduos em novos produtos.

Estamos igualmente atentos à evolução do enquadramento legal e o estímulo à circularidade. O futuro mercado voluntário de carbono, atualmente em discussão pública, pode ser uma oportunidade. Muito centrado no desenvolvimento e estímulo à floresta como via para sequestro de carbono ou redução de emissões, vamos sugerir que seja considerada a possibilidade de integração de projetos que, pela sua atuação, evitam a emissão de muitas toneladas de CO2, como é o caso do EcoGreen Power, que por cada tonelada consumida evita a queima de uma tonelada de combustível fóssil, o que evita a emissão de duas toneladas de CO2.

“Procuramos alcançar um aumento de vendas entre 15% a 20%, com a expectativa de faturar 14 milhões de euros até ao final do ano”.

Está previsto realizarem investimentos para este ano? Em quê? De quanto?
Depois dos fortes investimentos realizados nos anos anteriores, para 2023 não estão previstos investimentos no processo de produção.

Serão mantidos os investimentos em investigação e desenvolvimento, em colaboração com a academia, e realizados ajustes no processo produtivo para o tornar mais eficiente e competitivo.

Temos em curso um processo de licenciamento de armazenagem adicional para dar suporte às atividades, e que aguardamos com expectativa que a Agência Portuguesa do Ambiente possa dar parecer positivo, o que nos permitirá exportar o EcoGreen Power para mercados com forte interesse em produtos com certificação de sustentabilidade.

A Eco-Oil vai evoluir para o mercado dos biocombustíveis? Ou isso não está pensado?
Embora o EcoGreen Power não seja considerado um biocombustível, o nosso fuel tem um impacto igualmente positivo no ambiente. Apesar da sua origem ser fóssil, o seu processo de produção emite menos 99,75% de CO2 do que um combustível de refinaria, o que contribui para a redução da pegada carbónica da indústria. Qualquer indústria que utilize este fuel, estará a produzir menos 90% de gases poluentes, como por exemplo dióxido de azoto e enxofre.

A colaboração com a academia pode abrir novas opções que nos possibilite produzir outros combustíveis de natureza sintética, que possam ser utilizados na mobilidade, o que seria mais uma importante inovação e contribuiria para o forte incremento de sustentabilidade.

“A colaboração com a academia pode abrir novas opções que nos possibilite produzir outros combustíveis de natureza sintética, que possam ser utilizados na mobilidade”.

Olhando para a indústria dos combustíveis, de um modo mais geral, como é que entende que este setor se pode transformar para reduzir as suas emissões?
Acredito que grande parte desta transformação passa pela revisão dos seus processos, com vista a torná-los mais sustentáveis.

O investimento em unidades de produção de combustíveis sintéticos necessita de escala e integração industrial. Os processos de captação, uso e armazenagem duradoura de carbono serão outra área onde observaremos grandes mudanças nos próximos anos.

“A pressão sobre os produtos com origem fóssil deverá impulsionar a aceitação de novos combustíveis com origem nos resíduos e com baixa intensidade carbónica”.

A mudança só é possível por via do enquadramento legal e fiscal. A taxação das emissões de carbono, ou a sua limitação, terá grande impacto na rentabilidade das indústrias mais poluentes, que serão forçadas a mitigar as suas emissões.

Nos anos 90 ficámos satisfeitos com o fim das lixeiras e a sua transformação em aterros controlados e inceneração de resíduos. Nos próximos anos, vamos observar a transformação dos resíduos em novos produtos e a captação de CO2 como a única solução possível para se atingir a neutralidade carbónica. A pressão sobre os produtos com origem fóssil deverá impulsionar a aceitação de novos combustíveis com origem nos resíduos e com baixa intensidade carbónica, tenham estes carbonos ou não, uma vez que já é possível produzir fuels com uma emissão de CO2 quase nula e utilizar matérias-primas que outrora seriam desperdiçadas. No geral, não só contribui para a descarbonização da indústria, como também para o fortalecimento da economia circular.

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