Primeiro é uma estranha sensação de leveza Não fora vermos o chão a fugir-nos debaixo dos pés e diríamos que não era possível estarmos a levantar sem aquela sensação de velocidade que um avião, por exemplo, nos transmite. Estão 2 graus negativos, mas parece mais quente, e as estrelas brilham, ladeando uma lua quase cheia, e fazendo do cenário um privilégio. A ausência de ruído é de vez em quando interrompida pelo som dos queimadores que vão fazendo o balão subir mais e mais – “podemos ir até aos 10 mil pés, porque estamos em espaço aéreo não controlado”, esclarece o piloto – em direcção ao céu. Mas “se tivéssemos começado meia hora mais cedo ainda era mais bonito”, garante Guido Van Der Velden, de olhos azuis atentos à velocidade do vento e à altitude. O fundador da Windpassenger é um dos únicos pilotos certificados para voar de noite, e confessa adorar ver o dia nascer perto das nuvens.
O céu começa a ganhar um tom rosado que anuncia o nascer do sol, e os contornos da serra da Arrábida tornam-se mais claros à nossa frente. Lá em baixo, os campos, as casas, os animais vão-se tornando cada vez mais pequenos, enquanto continuamos a estranhar a ausência de trepidação e até de vento na cara. “É natural. Como vamos à velocidade do vento não o sentimos”, explica Guido. Mãos nos bolsos – quando não estão a tirar centenas de fotografias –, gorro na cabeça, não conseguimos despregar os olhos das cores que vão surgindo no horizonte e nas formas que se tornam mais nítidas à medida que o dia clareia. Estamos a sobrevoar Coruche, e as vacas e ovelhas que nos olham lá em baixo desviam o olhar em menos de nada. “Os animais aqui já não têm medo. Nasceram a ver balões no ar, porque o meu pai tinha aqui a empresa dele desde os anos 1980”, esclarece ainda o piloto luso-holandês.
O pai de Guido era português, a mãe holandesa, e ele veio “para cá assim que possível!”, conta-nos num simpático sorriso que o acompanhou durante a cerca de 1h30 de voo. Confessa que foi num balão que voou pela primeira vez. Tinha 9 anos.
Se calhar é daí que vem o amor por este antigo meio de transporte, admite. “Agora queria tirar a certificação para pilotar balões daqueles com sacos de areia, sabe? Iguais aos primeiros, mesmo”.
Viajar com a História
Guido faz todo o processo parecer tão simples que nos esquecemos de que estamos dentro de um cesto de verga, agarrados a um pedaço de tecido, a muitos metros do chão, a voar numa invenção de Bartolomeu de Gusmão.
Todo o material de um balão de ar quente é feito à mão e as inspecções não são somente obrigatórias como frequentes. O tecido deve ser trocado a cada 100 horas de voo e só o cesto – este, onde estamos, que dá para 7 pessoas – pesa cerca de 160 quilogramas. Mas há balões para tudo o que queira: já houve quem tivesse o pequeno-almoço feito por um chef nos ares e a mesa posta para o degustar, pedidos de casamento e viagens de amigos. Até um aniversário pode ser celebrado em pleno voo, uma vez que há cestos para 51 pessoas. “Tentamos fazer do voo aquilo que as pessoas quiserem”, e por onde quiserem. Apesar de a sede ser em Coruche, já sobrevoaram o Alentejo, o Norte e o centro do país e até Lisboa. Só é preciso ter as condições climatéricas ideais e tudo é possível.
O dia já nasceu completamente, e apesar do nevoeiro, conseguimos ver como a vida toma conta das ruas, agora. A temperatura subiu ligeiramente, graças a um delicioso sol de Inverno, e Guido começa a pensar onde irá aterrar. Uma das magias do balão é o facto de não ser dirigível. “É exactamente como andar de barco à vela, mas sem leme”, ri-se. É preciso ir apanhando os ventos certos para levar o balão na direcção pretendida. É por essa razão que estamos agora a perder altitude. “Precisamos de ir apanhar um outro vento, para mudar de direcção”, diz. Já não estamos a ir na direcção da Serra da Arrábida, que agora se encontra à nossa direita. Sem percebermos muito bem o que aconteceu, porque continuamos sem sentir qualquer trepidação, damos conta de que a rota se alterou. O telefonema do piloto para quem nos esperará em terra confirma que conseguimos apanhar o outro vento de que falava.
Único e irrepetível
Não conseguimos reconhecer os terrenos que por debaixo do nosso cesto nos tentam mostrar onde estamos, porque a perspectiva totalmente nova não no-lo permite, o que significa que cada voo será uma aprendizagem. A impossibilidade natural de seguir sempre a mesma rota faz de cada voo de balão uma experiência nova e irrepetível, antevendo-se um entusiamo renovado de cada vez que se começa a subir.
Guido conta que em Portugal existem, actualmente, no activo “uns oito ou nove pilotos” de balões de ar quente, embora haja duas dezenas de pessoas certificadas. As empresas de balonismo são poucas, mas a modalidade tem sido cada vez mais divulgada e tem ganhado adeptos, entre nacionais e estrangeiros.
Começamos a perder altitude, o que nos permite reconhecer as árvores que rapidamente nos cruzam o olhar. “Vamos aterrar naquele campo ali”, aponta Guido. Passámos mais de uma hora a voar e pareceram-nos 10 minutos. Cá em baixo voltamos a sentir o vento, e apesar de o sol já ter aquecido, é insuficiente para não nos fazer desejar que a experiência termine.
E Guido sabe disso. Quando voltamos a levantar os olhos, há uma toalha estendida por cima do cesto do balão – entretanto deitado – e toda uma panóplia de produtos regionais, desde queijos a chouriço de porco preto, fruta reluzente e taças de espumante. Afinal, são também possíveis saborosas viagens em terra.