A Autoridade da Concorrência (AdC) aplicou duas multas de valor considerável, uma de 132 M€ e outra de 19,5M€, a várias cadeias de supermercados e fornecedores por esquemas de combinação de preços lesivos dos interesses dos consumidores.
Num dos casos, a multa de 132M€ recaiu sobre quatro cadeias de supermercados – Auchan, E. Leclerc, Modelo Continente (grupo Sonae), e Pingo Doce (grupo Jerónimo Martins) – bem como o fornecedor comum de produtos alimentares, cuidado da casa e cuidado pessoal Unilever, por terem participado num esquema de fixação de preços de venda ao consumidor (PVP) de diferentes produtos da Unilever, das áreas alimentar, cuidado da casa e cuidado pessoal, tais como detergentes, desodorizantes, gelados, molhos e chás.
No outro caso, a multa de 19,5M€ incidiu em três cadeias de supermercados – Auchan, Modelo Continente (grupo Sonae), e Pingo Doce (grupo Jerónimo Martins) – bem como ao fornecedor comum de produtos de higiene pessoal e cosmética Beiersdorf e um responsável desta empresa, por terem participado também num esquema de fixação de preços de venda ao consumidor dos produtos da Beiersdorf, tais como desodorizantes, protetores solares, protetores labiais e cremes de rosto.
A AdC conclui que a concertação de preços em ambos os processos ocorreu através de uma estratégia designada de hub-and-spoke. O que significa, afinal, este tipo de combinação comercial?
Uma prática concertada hub-and-spoke é uma prática restritiva da concorrência em que o alinhamento dos preços entre concorrentes se consegue e implementa através de um parceiro comum e não, como nos cartéis, através de contactos bilaterais diretos entre concorrentes.
No caso da multa de 132M€ (envolvendo a Unilever), a investigação da AdC determinou que a prática durou durante cerca de 10 anos – entre 2007 e 2017. No processo de 19,5M€ (envolvendo a Beiersdorf), a AdC apurou que a prática durou sete anos – entre 2011 e 2017.
Esta prática consiste, por exemplo, em uma empresa que se encontra no nível superior da cadeia de distribuição (o fornecedor – o “hub”) facilitar, promover e/ou garantir o conluio ilícito entre elas, através de um conjunto reiterado de comunicações verticais com empresas que se situam no nível inferior da referida cadeia de distribuição (as empresas de distribuição – as “spokes”), permitindo o alinhamento de estratégias e de preços destas, configurando, assim, uma restrição grave da concorrência.
Assim, o fornecedor é instrumental para a garantia de um alinhamento que favoreça as cadeias de supermercados e o próprio fornecedor. O objetivo final é atingir esse alinhamento e a intervenção dos fornecedores era usada como meio de evitar contactos diretos, que redundariam num cartel tradicional.
Conspiração equivalente a um cartel
Ora, a investigação permitiu concluir que, mediante contactos estabelecidos através do fornecedor comum, sem necessidade de comunicarem diretamente entre si, as empresas de distribuição participantes asseguram o alinhamento dos preços de retalho nos seus supermercados, “numa conspiração equivalente a um cartel, conhecido na terminologia do direito da concorrência como hub-and-spoke“, diz a AdC.
“Tal prática elimina a concorrência, privando os consumidores da opção de melhores preços, mas assegurando melhores níveis de rentabilidade para toda a cadeia de distribuição, incluindo fornecedor e cadeias de supermercados”, reforça a AdC.
Numa nota, a AdC explica por que é que estas práticas não são admissíveis: “A existência de contactos sobre estratégia comercial entre parceiros comerciais não concorrentes – fornecedor e distribuidor – por si só nada tem de ilegal. É, de facto, inerente a esse tipo de parceria. Assim, discussões sobre formas apelativas de arrumar produtos em loja, conceção de produtos distintos mais inovadores que respondam às necessidades dos consumidores, atividade promocional, negociação de condições comerciais, meras recomendações de preços de venda ao público, bem como outras formas de tornar o fornecimento mais eficiente, são práticas lícitas e aceitáveis no âmbito de tal relação comercial”.
Quando a prática excede os limites do aceitável
No entanto, indica a AdC, “a prática em causa excede os limites do que é aceitável numa negociação fornecedor/distribuidor. Em ambiente concorrencial, cada agente económico desenvolve a sua conduta no mercado de forma autónoma. Esta exigência de autonomia na atuação no mercado (por exemplo em matéria de determinação dos preços) opõe-se frontalmente a qualquer contacto, direto ou indireto, entre empresas, suscetível de influenciar o comportamento no mercado de um concorrente. Ora, uma prática de hub-and-spoke implica o fornecimento de informação sensível, relativa à estratégia comercial presente e futura entre empresas e a divulgação desta informação, por meio indireto, às empresas concorrentes, com o objetivo de condicionar os respetivos comportamentos”.
A motivação dos agentes económicos
No entendimento da AdC, as motivações de cada uma das empresas participantes de um hub-and-spoke podem ser diversas, mas todas são orientadas para um objetivo comum: o de saírem favorecidas através da diminuição da dinâmica concorrencial por via do controlo do comportamento de mercado de todos os envolvidos.
“Por um lado, os fornecedores tentam fixar os PVP dos seus produtos num patamar artificialmente mais elevado, para que não sejam alvo de renegociações contratuais por parte das empresas de distribuição e possam manter a margem que idealizaram na venda dos seus produtos. Por outro lado, as empresas de distribuição eliminam a incerteza associada a uma ‘guerra de preços’, garantem a expectativa do recebimento de uma determinada margem na venda ao público e vendem os produtos a um PVP mais elevado do que o que resultaria de um mercado a funcionar em concorrência não falseada”, declara a entidade reguladora.
“Os consumidores resultam prejudicados, sem possibilidade de escolha do produto pelo preço, não beneficiando dos preços mais baixos que resultariam do funcionamento concorrencial do mercado”, conclui a AdC.
Práticas difíceis de comprovar
Sobre o facto de as práticas terem ocorrido em alguns casos, e só agora a AdC as sancionar, o organismo regulador refere que “as práticas de cartel, ou equivalentes, são tipicamente secretas e, por conseguinte, difíceis de comprovar. Durante a investigação ficou provado que os agentes envolvidos tinham consciência do ilícito praticado, tendo-se detetado inclusive comunicações com apelo à destruição de prova”.
Prossegue a AdC: “Durante as diligências de busca e apreensão que a AdC efetuou em 2017 a várias instalações da grande distribuição e fornecedores em todo o país, foi apreendida prova desta prática e verificou-se que, em alguns casos, recuava a 2007”.
Dois processos com coimas totais de 132M€ + 19,5M€
Num processo, a AdC decidiu impor uma coima total de 132 milhões de euros as quatro empresas de supermercados e ao fornecedor Unilever, tendo a fatia maior sido aplicada ao Modelo Continente (Sonae, com quase €50,8M€). Seguiu-se o Pingo Doce (Jerónimo Martins, com cerca de €35,7M€), Unilever (cerca de €26,6M€), Auchan (perto de €16,2M€) e E. Leclerc (Cooplecnorte, com cerca de €2,90M€).
No processo de 19,5M€, o valor mais elevado foi aplicado ao responsável individual da Beiersdorf (quase €9,3M). Segue-se o Modelo Continente (€7,5M€), Pingo Doce (4,9M€), Beiersdorf (4,4M€) e Auchan (2,7M€).
Por cadeias de supermercados, somadas as coimas da AdC, o Modelo Continente responde por 58,3M€, o Pingo Doce por 40,5M€, a Auchan por 18,8M€ e o E.Leclerc por cerca de 2,9M€.
Estas coimas destes processos são agora passíveis de recurso e vários dos visados já fizeram saber que vão recorrer.