Neste momento, basta olhar para as grelhas de partida da Fórmula 1, Fórmula 2 e Fórmula 3 para se perceber um pouco da história de Tatiana Calderón. Entre as três categorias estão disponíveis 72 lugares: 71 são ocupados por homens e um é ocupado por uma mulher (Sophia Floersch). Desde pequena que Tatiana sonha com um desporto que continua a ser visto como um lugar para homens, mas nem isso fez com que a colombiana baixasse os braços. Ela afirma que não sabe porque é que a sua personalidade a leva a insistir em algo mesmo quando lhe dizem o contrário, mas talvez não seja uma questão de personalidade. Trata-se de abrir espaço quando não se tem um lugar em mesa alguma, empurrar a porta quando todas estão fechadas, falar mesmo quando ninguém quer ouvir. Trata-se de ser mulher.
Quando é que as corridas se tornaram o teu sonho?
Tinha isso bem claro desde o momento em que comecei a correr na Colômbia, mas demorou algum tempo a convencer-me a mim própria e ao meu círculo, por isso diria que quando tinha cerca de 13, 14 anos. Comecei a sair-me muito bem nas corridas, foi quando pensei que podia ter uma hipótese de fazer disto a minha vida.

Havia alguma mulher na modalidade que te inspirasse?
Acho que foi mais tarde que me inspirei noutras pilotos, mas, na altura, era mais o Juan Pablo Montoya, um piloto colombiano que chegou à Fórmula 1. Na Colômbia houve um grande boom no desporto automóvel por causa dele.
Foi difícil crescer sem exemplos femininos no desporto?
Acho que, por vezes, é preciso ver para acreditar que se pode estar lá. Para mim, foi do género: ‘Sou a única a fazer isto, mas quem disse que não posso ser?’. Começou a ser um pouco confuso quando não vi mais nenhuma rapariga e as pessoas tratavam-me – a mim e à minha irmã, porque começámos a correr juntas -, de forma diferente quando começámos a ganhar. Eu perguntava-me: ‘Isto é normal? Posso mesmo fazer isto?’. Essas coisas surgiram mais tarde, algumas dessas dúvidas, porque não se vê nenhuma outra rapariga e começamos a questionar se será normal estarmos ali ou se não deveríamos estar.
O que mudou quando começaram a vencer?
Mudou a atitude das pessoas em relação a nós. No início, toda a gente dizia ‘que bom, temos duas raparigas, se precisares de alguma coisa podemos ajudar-te’, mas assim que começámos a ser competitivas [começaram a dizer] ‘esta rapariga vai ganhar ao meu rapaz, não é possível’. As pessoas começaram a dizer: ‘Se calhar ela tem um kart melhor ou elas estão a fazer batota’. Ou começam a tentar deitar-te abaixo e depois ficas mesmo sozinha porque ninguém quer que faças as coisas bem, sentem-se ameaçados por ti. Foi quando tudo começou a mudar, quando nos começámos a tornar verdadeiras rivais.
Eu tinha nove anos e perguntava aos meus pais: ‘Estamos a fazer batota? É verdade o que eles dizem?’. Começamos a duvidar muito.
Achas que isso pode levar algumas meninas a desistir?
Infelizmente, acho que sim. No meu caso, não sei porque é que a minha personalidade é assim, mas quando me dizem que não consigo fazer alguma coisa, quero fazê-la 50 vezes mais para provar o meu ponto de vista. Mas já vi outras meninas que desistem. As palavras são muito poderosas e quando damos esse poder a pessoas que talvez não tenham os conhecimentos necessários ou que apenas nos querem deitar abaixo para limitar as nossas capacidades, pode ser muito difícil entrar neste desporto. É preciso ser mentalmente muito forte para resistir e seguir em frente. Ainda não é um desporto muito acolhedor para a participação feminina.
Porque é que o universo Fórmula e os desportos motorizados no geral são tão dominados pelos homens e, de certa forma, tão adversos à presença de mulheres?
Acho que existe esta falsa imagem de que é preciso muita coragem para conduzir um carro de corrida. Poucas pessoas têm a oportunidade de conduzir carros até ao limite, por isso as pessoas falam muito sobre como nos sentimos, mas na verdade nunca o fizeram. E, por alguma razão, acham que as mulheres não são assim tão corajosas. Penso que somos muito capazes, damos à luz, a dor que podemos suportar, o que as mães são capazes de fazer pelos filhos, isso é notável. Sinto que, quando conduzo, é tudo uma questão de encontrar harmonia, é uma questão de sentimentos, de estar em sintonia com o carro e compreender o lado técnico. Gostava que mais pessoas olhassem para isto desta forma, mas estamos muito presos ao mundo falso que nos vendem, de que talvez os pilotos sejam heróis, mas somos apenas seres humanos com sentimentos e inseguranças. E é por isso que não é muito acolhedor para as mulheres em qualquer aspeto. Quando olhamos para todos os carros, vemos que foram concebidos com medições masculinas, tudo é concebido para e por homens, e enquanto não houver mais mulheres, não há equidade. E isso leva tempo.

O que é necessário mudar para que haja um equilíbrio entre os géneros no desporto automóvel?
Neste momento, é muito ‘sim, queremos uma mulher’, mas só porque querem assinalar uma caixa e dizer que estão a apoiar. Mas tem de ser a mulher certa! Aquela que tem toda a preparação, todo o conhecimento. Eles têm de acreditar que ela é capaz de fazer o trabalho a sério. Sinto que precisamos de mais mulheres, claro, em todos os níveis, porque somos diferentes. Não somos melhores, nem piores, somos diferentes. Funcionamos de forma diferente, olhamos para o mundo de uma forma diferente e isso pode ser muito útil quando olhamos para o desporto automóvel. Por exemplo, um Red Bull e um Ferrari podem ser completamente diferentes em tudo e ainda assim conseguem fazer os mesmos tempos por volta, por isso há muitas formas de encontrar o tempo por volta num carro de corrida. Sinto que para obter esse ponto de vista de uma mulher precisamos de mais dados de mulheres, por isso precisamos de mais mulheres a trabalhar no desporto. Mas não é só porque se é mulher que se deve estar na F1, também é preciso provar que se é capaz, mas precisamos que mais pessoas com essa qualidade tenham essa oportunidade.
Há mulheres competentes que talvez não tenham a oportunidade de mostrar realmente o que podem fazer e estão sempre um pouco limitadas em certas coisas. Tem de partir das pessoas que tomam as grandes decisões.
Homens?
Exatamente. Infelizmente, neste momento só há homens como chefes de equipa, por exemplo. É preciso que haja mais igualdade também nesse domínio.
Tu foste a primeira mulher a assinar por uma equipa de Fórmula 2. O quão difícil foi chegar a esse ponto?
Foi, de certa forma, um sonho tornado realidade conduzir na Fórmula 2, ter todos os olhos da Fórmula 1 a observarem-nos, ir a lugares incríveis para competir, nas ruas do Mónaco, de Baku, em todo o mundo. Foi um privilégio. Mas foi muito difícil porque acho que não me foi dada a melhor oportunidade. Estava grata por estar lá, mas isso não é suficiente. Para ter uma verdadeira oportunidade de fazer um bom trabalho, é preciso mais do que isso.

Se tudo é desenhado para os homens, na Fórmula 2 tiveste que conduzir um carro que não era desenhado para ti?
Sim, apercebi-me durante a minha carreira que, por vezes, não me sinto confortável num carro e isso deve-se ao facto de ter de modificar muitas coisas. Não somos tão fortes como os homens, mesmo que quiséssemos, e treinamos, mas não é possível, é assim que as coisas são. Por isso, para as mulheres, é claro que é preciso estar em boa forma física, mas também é preciso estar sentada na posição correta e ser ergonomicamente boa no carro. Isto, sinto, não estava lá. E o conhecimento não estava lá, eu trouxe o conhecimento.
O homem ao teu lado tem um carro desenhado para ele e tu não, mas as pessoas esperam que faças mais do que ele. Como é que isso é justo?
Exatamente. E se o fizeres, eles ficam surpreendidos com o que fizeste. Mas esquecem-se muito rapidamente. Temos de provar sempre o que valemos, porque eles pensam ‘talvez tenha sido uma casualidade’ ou ficam zangados com o rapaz: ‘O que se passa contigo, tens um carro melhor, porque é que ela te vence?’. Nunca é suficiente para eles, por isso, quer sejamos melhores ou piores, seremos sempre julgadas, não a favor, infelizmente. Eu saí-me bem, mas depois eles não olham para o quão bem eu me saí, mas sim para o quão mal o outro tipo se saiu. Há sempre algo que eles apagam. É uma motivação, mas ao mesmo tempo uma frustração, porque provo que estão errados, mas tenho de continuar a fazê-lo vezes sem conta. Infelizmente, este desporto depende muito das ferramentas que temos e essas ferramentas são o carro e os nossos engenheiros e, por vezes, talvez não nos seja dado o mesmo equipamento que a outras pessoas.
Estás onde querias estar na tua carreira?
Não me arrependo de nada, porque acho que dei os meus 100%. Gostava de ter tido mais oportunidades de me sair bem em certas séries, mas aprendi muito comigo própria, com todos os campeonatos nos países em que corri. Acredito que sou uma piloto muito completa e espero ter a oportunidade de o provar num ambiente que me seja favorável no futuro.

Qual é o teu grande objetivo?
Diverti-me tanto a correr na América, na Indy Car, adoraria ter outra oportunidade de correr lá. E, claro, qualquer pessoa que recebesse a oferta de um lugar na Fórmula 1 não duvidaria em aceitar. Mas sei que não sou eu que não estou pronta, sei que é o ambiente que não está pronto. Se estiver pronto no meu tempo, ótimo, se não, sinto que a Indy Car é o meu próximo sonho.
O quão longe achas que as mulheres estão da Fórmula 1?
Penso que a pergunta deveria ser: Quando é que a Fórmula 1 vai estar pronta? E é para isso que não tenho uma resposta, porque acredito que temos tudo para sermos competitivas ao mais alto nível, mas no final é uma questão de eles reconhecerem e darem a oportunidade.
Qual é a sensação de conduzir um carro de Fórmula 1?
São os carros mais rápidos do planeta, as forças g, a velocidade a que tudo nos atinge tão rapidamente, o que nos atravessa o corpo, é algo incrível. É realmente algo único e muito especial. Para mim, valeu a pena esperar. Senti-me pronta para dar esse passo e é uma sensação boa quando conduzimos o carro dos nossos sonhos e sentimos que estamos prontas. Foi, sem dúvida, um dos momentos mais especiais da minha carreira.
O que sentes quando olhas para a Fórmula 1 e vês equipas a colocar mulheres como piloto de reserva ou de desenvolvimento, mas sem lhes darem uma oportunidade?
É frustrante, sem dúvida. Mas, por vezes, é assim que começa. Desde que tenhamos a oportunidade de mostrar o que somos capazes, cabe-nos a nós manter a porta aberta ou fechá-la na nossa cara. Mas o que eu não entendo é: testas estas raparigas, vês o seu potencial, mas não tens coragem suficiente para as pôr no carro quando importa. Isso é realmente frustrante. Espero que este último passo que temos de dar seja mais rápido. É só acreditar, acreditem no que veem. Eu fui suficientemente rápida, mas eles não confiaram. É frustrante esperar que um dia eles tomem a decisão.

Porque foi importante lançares o livro ‘La niña más veloz que el viento‘?
Fiquei muito contente por lançar esse livro. Tudo o que ganhamos com o livro vai para uma fundação na Colômbia, para iniciar um programa de educação sem estereótipos. Também foi muito bom para mim perceber de onde venho, as barreiras que a certa altura não queria ver, porque só queria continuar, mas era importante mostrar essas barreiras para que outras raparigas se possam identificar com a minha história e para que possam manter os seus sonhos e continuar a perseguir o que querem na vida. Por vezes damos demasiada atenção a outras pessoas que nos limitam e acabamos por não seguir o nosso coração ou a nossa paixão. Foi libertador para mim, mas também para tentar encorajar a próxima geração e as pessoas dentro do desporto a mudarem a sua abordagem.
Qual é o papel da Karol G na tua carreira?
Trata-se de mulheres que trabalham em conjunto com mulheres. Tenho o apoio da Karol G, que é uma cantora colombiana e tem uma fundação para empoderar as mulheres. No ano passado, perdi o meu patrocinador na Indy Car e ela veio apoiar-me, ajudar-me a voltar a correr. Sinto que é uma questão de mulheres a ajudarem mulheres e isso é muito poderoso.
Sentes-te pressionada para ser a voz das mulheres na modalidade e o modelo a seguir das gerações mais novas?
Sinto que isso é um privilégio. Poder representar as mulheres, poder mostrar que, com paixão e trabalho árduo, tudo é possível e que devemos sempre acreditar em nós próprias em primeiro lugar. Claro que, por vezes, também é uma grande responsabilidade, mas sinto que se podemos mudar o futuro de alguém sendo nós próprias e tentando dar o melhor de nós naquilo que nos apaixona, então estou muito feliz por ser considerada um modelo a seguir e espero inspirar mais raparigas a entrar no desporto.

Que legado esperas deixar no desporto?
Adoro apoiar outras raparigas que estão a começar, sou muito apaixonada pelas corridas e pelo que sinto quando conduzo um carro de corrida, por isso, talvez seja uma agente de mudança e espero tornar o desporto mais inclusivo para as mulheres. Ser recordada como alguém que realmente lutou por essas oportunidades. Seria isso que eu gostaria de deixar para trás.
O que esperas que a expressão “Play like a girl” signifique hoje em dia?
Adoraria que fosse sobre as pessoas deixarem de ouvir as limitações que os outros lhes impõem. Podemos ser tudo o que quisermos na vida se tivermos paixão dentro de nós. E não é só para as crianças, por vezes como adultos esquecemo-nos de continuar a sonhar porque temos mais responsabilidades e talvez nos preocupemos mais com o que as pessoas dizem, mas não devia ser assim. Espero que mude muitas pessoas, para que vejam o mundo de uma forma diferente e continuem a sonhar, independentemente da idade.
O que é que gostavas que as pessoas soubessem sobre ti?
A paixão que tenho pelo que faço, o envolvimento que gosto de ter como piloto de corridas. O meu espírito de luta. Sempre fui muito competitiva, também comigo própria, por isso penso que as pessoas talvez não se apercebam, por vezes, de como me julgo a mim própria para me tornar melhor.