Telma Monteiro é uma das 40 mulheres mais influentes do desporto em Portugal para a Forbes e um dos grandes nomes do judo nacional. Aos 38 anos, anunciou o final de uma carreira que contou com mais de duas décadas e a levou a uma medalha olímpica (o bronze, no Rio de Janeiro). Antes de anunciar a despedida, por altura da publicação desta lista na edição de dezembro/janeiro, a Forbes falou com a atleta sobre o seu percurso na modalidade, a importância da sua voz e o momento atual do judo em Portugal.
Que momentos destaca da sua carreira até aqui?
Acho que as primeiras competições que fiz no circuito sénior, em que eu consegui perceber a exigência de estar num nível diferente. Tive muitas vitórias importantes que me marcaram, mas aquilo que me fez crescer mais enquanto atleta, e também como pessoa, foram as vezes em que eu não atingi o que era o principal objetivo da minha carreira, que era sempre a medalha Olímpica. As vezes em que isso não aconteceu antes do Rio, em 2016, diria que foram as que tiveram mais impacto no meu crescimento. Tudo o que conquistei depois, ou o que fui conquistando entre cada ciclo, teve a ver com o crescimento que essas fases me iam dando sempre. Não foram momentos positivos em termos de resultados desportivos, mas permitiram-me crescer para que eu tivesse depois outros momentos muito importantes.
Entre Europeus, Mundiais e Jogos Olímpicos, que competição é mais desafiante?
São competições diferentes, mas acho que, sem dúvida, os Jogos Olímpicos. Pela envolvência que tem, pelo mediatismo, mesmo pela forma como a competição está estruturada. Temos menos tempo de um combate para o outro, menos tempo para descansar, toda a atenção mediática e toda a expectativa que recai sobre os Jogos Olímpicos faz com que a competição seja diferente, seja mais exigente ainda do ponto de vista psicológico. Não tem a ver com o nível competitivo porque nós estamos habituados a competir com os melhores do mundo em todas as competições que fazemos, o campeonato do mundo é extremamente competitivo porque entram duas atletas por país, o que faz com que a competitividade seja elevadíssima, mas depois o contexto mediático e toda a expetativa que se gera em torno do resultado dos Jogos Olímpicos faz com que a competição tenha um impacto diferente. Primeiro também porque tem de haver uma qualificação muito exigente, uma qualificação de dois anos extremamente exigente, e acontece só de quatro em quatro anos. Nós nunca sabemos se teremos outra oportunidade de estar a competir nessa competição, de conquistar um grande resultado, e isso faz com que a pressão aumente.

A Telma foi operada, conseguiu recuperar, mas depois ficou fora dos JO de Paris. O quão duro foi todo esse processo?
O processo em si foi extremamente duro, porque recuperar em seis meses era o mínimo e já seria muito arriscado, o ideal seriam oito, alguns diziam dez. Eu tive que voltar em cinco meses. Para voltar em cinco meses o processo foi extremamente exigente do ponto de vista psicológico, não só físico. Tive de saltar muitas etapas, e obviamente saltando etapas sabia que o risco de me voltar a lesionar aumentava, isso tudo é muita pressão psicológica. Depois a própria exigência do tempo que eu tive que despender para conseguir estar minimamente capaz de competir. Tenho a certeza que foi o mais exigente que já fiz na minha carreira. E depois disso o próprio processo de competir, sabendo que tinha um risco praticamente absoluto de voltar a rasgar os ligamentos, por estar a voltar tão precocemente, e ao mesmo tempo saber que obviamente não tinha tido tempo para me preparar ao mais alto nível. Psicologicamente diria mesmo que foi violento. Foi um mês de competições seguidas, um mês e meio, e era o querer atingir o meu objetivo de fazer história, porque eu faria história se conseguisse estar presente nos sextos Jogos Olímpicos, e sentir que o tempo estava a passar, que eu estava a ficar cansada, que não conseguia recuperar de uma competição para a outra e que o risco cada vez era maior. Fiquei a um lugar, pouquíssimos pontos de conseguir fazer história, que foi bastante difícil de digerir, mas ao mesmo tempo saber que passei todos os limites para conseguir, que superei todas as barreiras possíveis e imagináveis para tentar, deu-me muita tranquilidade e permitiu-me estar em paz e sentir muito orgulho do meu percurso. Acaba por ser uma vitória, porque quando nós não atingimos um objetivo que toda a gente consegue ver, para fora é como se tivéssemos falhado, mas internamente foi algo que nunca me passou pela cabeça, ter falhado. Quando eu não consegui realmente fiquei bastante triste e frustrada, mas nunca com a sensação de que falhei, fiquei com a sensação de que não havia mesmo mais nada que eu pudesse ter feito.
Mesmo não tendo conseguido a qualificação, a Telma foi a Paris. Porque é que foi importante estar lá?
Muito importante, eu queria muito estar perto dos outros atletas, principalmente da equipa nacional de judo, acompanhar, viver essa experiência, estar perto deles, apoiá-los. Sabia que havia a possibilidade de ganharmos medalhas, e por outro lado sabia que era um desafio, psicologicamente, estar a viver uma experiência do lado de fora, uma coisa que eu tinha sempre em perspetiva que ia viver dentro do tapete. Tive consciência que embora fosse um risco, também era parte do processo de luto. Porque eu sinto que tive que fazer um luto de não ter conseguido atingir esse objetivo, então, para mim, foi o encerrar de um ciclo completamente. Eu teria sempre que encerrar esse ciclo olímpico em Paris fosse como fosse, e para mim foi mesmo muito importante psicologicamente e emocionalmente.
Com uma carreira tão positiva, sente que ainda lhe falta alguma coisa?
Eu sinto que a minha carreira, a determinado ponto, não teve a ver com aquilo que eu ainda tinha que conquistar. Era uma escolha pessoal, fazia sempre sentido para mim. As vezes que eu decidi continuar a competir foi porque tinha vontade de competir, tinha prazer de competir, o mesmo pelo treino. Sentia que podia conquistar mais, não que tinha [que conquistar mais], são duas coisas diferentes. Eu cheguei a um ponto na minha carreira que sentia essa liberdade de poder competir por total prazer e sabia que podia conquistar mais, mas não tinha que. Acho que a minha carreira já está muito construída, solidificada, então não tenho mesmo mais nada para provar. Decidindo ou não continuar a competir, nunca seria pelos resultados. Isso também me deixa bastante tranquila.

No judo, é mais difícil ser mulher?
Sinceramente, quando eu era mais nova não tinha essa perceção. Quando fui ficando mais adulta, mais mulher e amadurecendo, comecei a ter a perceção de que os resultados das mulheres não são tão valorizados. Obviamente que não falo só de mim, porque eu sou uma atleta bastante reconhecida e sempre bastante acarinhada, ganhei muitas medalhas de forma consecutiva, o que atraiu muita atenção. Mas de uma forma geral, o que eu senti muito foi a diferença com que as medalhas entre uma mulher e um homem eram celebradas, como se fosse mais fácil a mulher atingir esses resultados sinceramente. E a sensação que eu tenho também é que ainda é difícil aceitarem que a mulher tem voz. No judo isso também acontece. Somos um pouco vistas com alguma rebeldia quando tentamos expressar a nossa opinião e ideias – e digo expressar, não impor – parece que é sempre aceite com mais dificuldade. Da minha parte, tentei sempre fazer-me ouvir, porque eu tenho a perceção de que tenho bastante experiência com aquilo que é necessário para que o desporto e a modalidade também possam evoluir. Então, para mim faz sentido ter essa oportunidade de me expressar, e até para que pudesse ter sempre boas oportunidades de crescer na minha carreira.
Foi isso que a Telma sentiu quando deu voz pelos atletas numa altura em que a situação na federação não era a melhor?
Sem dúvida que tive a perfeita noção de que, por ser mulher, causava ainda mais desconforto. O facto de eu estar a tentar ter melhores condições, ou a tentar dar conhecimento daquilo que estava a acontecer numa modalidade que não estava tão bem, nomeadamente a forma como os atletas estavam a ser tratados. Senti que, por ser mulher, estava a causar ainda mais desconforto e quem não concordava. Mas eu já tinha perceção disso, então não foi algo que me chocou ou que me fez sentir receio, eu já sabia que isso poderia acontecer.
E sabendo que isso poderia acontecer, essa poderia ser a perceção do lado fora, o que é que leva a Telma a falar na mesma?
O sentido de justiça, de fazer aquilo que é certo. Na verdade, quem estava a falar era eu e os outros atletas, obviamente que eu, sendo uma atleta mais conhecida, as coisas recaiam muito sobre o meu nome. Foi saber que aquilo que nós estávamos a fazer era o correto. Porque há um modo para como as pessoas têm de ser tratadas, há um limite daquilo que podemos aceitar enquanto seres humanos, enquanto atletas de alta competição. Tentámos resolver internamente e depois chegámos a um ponto que, vendo que as coisas não se iam resolver internamente, as coisas teriam que tomar outras proporções para que conseguíssemos. Então, a responsabilidade que eu senti, o sentido de justiça era muito maior do que toda a exposição que eu pudesse ter ou tudo aquilo que as pessoas pudessem pensar sobre mim. Nunca foi muito uma coisa que me preocupasse porque quando eu acho que estou a fazer as coisas de acordo com os meus valores e com aquilo que é correto, eu sei lidar com a opinião de fora. Não foi fácil, não vou dizer que foi fácil, mas tenho a plena consciência que tenho a personalidade para conseguir suportar a opinião que vem de fora, que é sempre respeitada, porque quem está de fora às vezes não tem acesso a tudo. Estamos num mundo em que a informação acontece de forma muito rápida e as pessoas às vezes nem abrem notícias para ter conhecimento de tudo, não exploram a notícia, então formam uma opinião antes de ter conhecimento de tudo. Nós temos de estar preparados para isso quando tomamos uma decisão dessas e eu estava preparada. Posso agora dizer que tomou uma proporção que eu nunca pensei que pudesse tomar porque achei que as coisas se resolveriam antes, de uma forma mais pacífica. Portanto, também me surpreendeu a exposição que teve.
As coisas mudaram? Como é que olha para a situação atual do judo em Portugal?
Diria que algumas coisas atenuaram, nomeadamente a forma como os atletas são tratados, mas relativamente às necessidades para a alta competição, para o desenvolvimento da modalidade, temos de ser humildes e refletir sobre as coisas que são precisas porque acho que ainda podemos continuar a trabalhar. E se nós queremos continuar a evoluir enquanto modalidade, embora tenhamos tido a medalha da Patrícia e a medalha do Djibrilo nos Paralímpicos, não nos podemos garantir com os resultados. Temos que garantir que continuamos a refletir e a trabalhar para que a modalidade evolua, para mim é assim que faz sentido. Acho que as coisas não ficaram 100% resolvidas e enquanto quisermos melhorar temos sempre que pensar de uma forma positiva para que as coisas continuem a evoluir.
Qual é o legado que espera deixar no desporto em Portugal?
Acho que hoje em dia as pessoas já me conhecem melhor e têm uma maior perceção de mim como pessoa. Os resultados passam, mas a forma como nós marcamos as pessoas enquanto personalidade, caráter, honestidade, acho que isso fica para sempre. Se isso marcar as pessoas de uma forma positiva, é isso que fica. A minha resiliência, a minha capacidade de trabalho, a minha entrega, isso é o que eu quero que fique. Porque eu podia ter conquistado todos os resultados que conquistei de outra maneira, mas eu conquistei-os com o trabalho, com resiliência, com muita honestidade. Prefiro que fique isso acima dos resultados. Que toda a gente entenda que os resultados foram uma consequência de tudo o que a Telma é. Para mim o judo foi sempre um palco onde eu me pude expressar. Não sinto que o judo me define, sinto que no judo me pude expressar. E acho que isso é o mais importante de tudo. Se as pessoas se lembrarem como é que eu era, para mim isso é o mais importante de tudo.